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segunda-feira, 28 de abril de 2014

Considerações sobre o trabalho humano



Sempre o homem procurou, com o seu trabalho e engenho, desenvolver mais a própria vida; hoje, porém, sobretudo graças à ciência e à técnica, estendeu o seu domínio à natureza inteira, e continuamente o aumenta; e a família humana, sobretudo devido ao aumento de múltiplos meios de comunicação entre as nações, vai-se descobrindo e organizando progressivamente como uma só comunidade espalhada pelo mundo inteiro. Acontece assim que muitos bens que o homem noutro tempo esperava sobretudo das forças superiores os alcança hoje por seus próprios meios.
(nº 33 do cap. III,  da Constituição “Gaudium et Spes” 
de Sua Santidade o Papa Paulo VI)  
Nota: os sublinhados são nossos

Comentário

Neste documento fulcral do Vaticano II é deste modo que começa o Papa Paulo VI a ajuizar sobre “A actividade Humana no Mundo” apondo-lhe, logo após o texto acima reproduzido, três interrogações que devem ser interiorizadas e respondidas pelo desenrolar da vida, com ou sem a acção cristã do homem: qual o sentido e o valor desta laboriosa actividade? Que uso fazer de todas estas coisas? Qual o fim dos esforços individuais e colectivos? Cumpre, assim, ao homem na individualidade da sua acção e ao colectivo social que o acolhe responder a todas elas, o que não podendo ser feito neste breve comentário, cabem, contudo,  respostas breves às questões formuladas. Tomem-se por base as palavras do Génesis inscritas no mandato de “submeter a Terra” (Gn 1, 27-28).

Concluiremos, que desde então, o homem procurou, com o seu trabalho e engenho, desenvolver mais a própria vida, não sendo despicienda a afirmação de que os pais coevos da Criação e todas as criaturas sucedâneas, (homem ou mulher) ao mergulharem nesta primeira ordem, a pouco e pouco se deram conta dela ter ganho uma abrangência universal, decorrendo daí o direito e o dever do seu exercicio na procura de lhe dar o sentido e o valor desta laboriosa actividade, enquanto actividade nobre, ao constituir uma dimensão fundamental da existência humana sobre a face da Terra, que não é, apenas uma decorrência da Fé se tivermos na devida conta os primeiros trabalhos cometidos ao homem: Abel foi pastor de ovelhas e Caim foi lavrador.

Quando Paulo VI nos deixou a segunda questão: Que uso fazer de todas estas coisas - e aqui radicam a Fé e as Ciências - urge que lhe sejam dadas respostas não evasivas, mas nobilitadoras da permanência adulta da criatura perante o mundo que a cerca, porquanto, a natureza do trabalho humano deve ter implicações verdadeiras e até modificadoras da organização social. donde o uso que é feito do produto laboral não pode deixar de ter o destino de ser útil a todo os homens, dada a universalidade da ordem dada por Deus ao submeter a Terra pelo poder do homem - imagem da força criativa de  Deus -  e não este à matéria que lhe dá forma mas sem lhe ter o poder da alma.
 Mas, porque o trabalho conduz à necessidade de organizar e modelar a ordem social, ainda que  esta nasça de um imperativo material, para que seja atingida a sua função social tem de  levar dentro a ordem moral - a sua alma -  tornando-o, por isso, um auxiliar indispensável na educação do próprio homem e do colectivo que o cerca.

Por fim, a terceira questão: Qual o fim dos esforços individuais e colectivos? Todo o trabalho humano, pelo que já se expendeu, tem de ter uma dimensão social, partindo da acção tantas vezes ignorada de um só - pessoa ou nação -  para se fundir como um metal precioso no cadinho do tecido global, num desejo em que, o trabalho para outros é fazer algo para alguém, entretecido no intercâmbio de relações e dos encontros que se geram. Por fim, uma sociedade mais justa, a partir das nações na multiculturalidade que as informa, como diz o texto do Vaticano II, vai-se descobrindo e organizando progressivamente como uma só comunidade espalhada pelo mundo inteiro.

Mas esta jamais existirá se lhe faltar a mais valia do coração humano centrado em Deus, o que nos leva a reflectir sobre a afirmação de Henryk Sienkiewicz: para onde quer que o homem contribua com o seu trabalho deixa também algo do seu coração, algo que é indispensável, porque esta comunidade tem de ser o reflexo das pequenas comunidades familiares que procuram no trabalho os fundamentos agregadores, porque, na busca da perfeição não podem dispensar as almas que vivem nos corações do homem e da mulher.


domingo, 27 de abril de 2014

Morreu o "soldado" do contra a aplicação do desnecessário "Acordo Ortográfico" (1942-2014)




Morreu, hoje, Vasco da Graça Moura, Prémio Pessoa em 1995


Era Presidente do Centro Cultural de Belém, tarefa que cumpriu quase até à hora da sua morte bem como a assunção da escrita das suas crónicas semanais para o jornal "Diário de Notícias. Tinha 72 anos.

Poeta e ensaista, o grande intelectual que ele foi, notabilizou-se na tradução directa do espanhol, do francês, do italiano, do inglês e do alemão para a língua portuguesa de grandes poetas - como Dante de quem traduziu a Divina Comédia - e outros, como: Petrarca, Rainer Maria Rilke, Federico Garcia Lorca, Pierre Ronsard e dramaturgos do século XVII: Corneille, Moliére e Racine.
Não cabe aqui, traçar a trajectória intensa da sua vida de intelectual - até por falta de engenho -  mas tão só assinalar a perda inestimável de um grande valor pátrio e, lembrar, o combate acesso que sempre travou com aqueles que advogaram a legitimidade do "Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa" que foi para ele um "crime" contra a genuinidade da nossa matriz ortográfica e sobre o qual escreveu em 2008 o ensaio "Acordo Ortográfico:a Perspectiva do Desastre".
A tentativa de o ver aplicado constituiu a grade batalha dos seus últimos anos de vida.

Político, também, a sua ligação ao PSD nunca mereceu da "esquerda" a sua plena aceitação, porque, salvo as raras excepções - que as há, sempre - grande parte dos coriféus que alinham naquelas águas, o olhavam, sem atender ao seu grande valor, manifestado, embora, em muitas partes por onde passou o seu saber.

Autor de quase uma trintena de livros, foi homenageado em Janeiro do presente ano com a Grã-Cruz da Ordem de Santiago da Espada, pelo Presidente da República, no decorrer do colóquio que a Fundação Gulbenkian lhe dedicou, estando na altura, já  visivelmente adoentado.

Ao falar, hoje sobre este infausto acontecimento, a partir do Vaticano onde assistiu à canonização dos Papas João XXIII e João Paulo II, Marcelo Rebelo de Sousa informou que no ano de 2007, Vasco da Graça Moura havia sido distinguido pelo Ministério da Cultura de Itália, com o Prémio Nacional de Tradução, para aquela língua.

Da sua poesia ficam aqui, como homenagem as seguintes composições:



insinceridade


quis-nos aos dois enlaçados
meu amor ao lusco-fusco
mas sem saber o que busco:
há poentes desolados
e o vento às vezes é brusco

nem o cheiro a maresia
a rebate nas marés
na costa de lés a lés
mais tempo nos duraria
do que a espuma a nossos pés

a vida no sol-poente
fica assim num triste enleio
entre melindre e receio
de que a sombra se acrescente
e nós perdidos no meio

sem perdão e sem disfarce,
sem deixar uma pegada
por sobre a areia molhada,
a ver o dia apagar-se
e a noite feita de nada

por isso afinal não quero
ir contigo ao lusco-fusco,
meu amor, nem é sincero
fingir eu que assim te espero,
sem saber bem o que busco.

 in "Antologia dos Sessenta Anos"
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princípio do prazer

à sua volta os pombos cor de lava
nos arabescos pretos do basalto
e gente, muita gente que passava
e se detinha a olhá-la em sobressalto

no seu olhar havia uma promessa
nos seus quadris dançava um desafio
num relance de barco mas sem pressa
que fosse ao sol-poente pelo rio

trazia nos cabelos um perfume
a derramar-se em praias de alabastro
e um brilho mais sombrio quase lume
de fogo-fátuo a coroar um mastro

seu porte altivo punha à vista o puro
princípio do prazer que caminhava
carnal e nobre e lúcido e seguro
com qualquer coisa de uma orquídea brava

e nas ruas da baixa pombalina
sua blusa encarnada era a bandeira
e o grito da revolta na retina
de quem fosse atrás dela a vida inteira.

 in "Antologia dos Sessenta Anos"
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lâmpada votiva

1. teve longa agonia a minha mãe

teve longa agonia a minha mãe:
seu ser tornou-se um puro sofrimento
e a sua voz apenas um lamento
sombrio e lancinante, mas ninguém

podia fazer nada, era novembro,
levou-a o sol da tarde quando a face
lhe serenou, foi como se acordasse
outra espessura dela em mim. relembro

sombras e risos, coisas pequenas, nadas,
e horas graves da infância e idade adulta
que este silêncio oculta e desoculta
nessas pobres feições desfiguradas.

quanta canção perdida se procura,
quanta encontrada em lágrimas murmura.

2. e não queria ser vista e foi envolta

e não queria ser vista e foi envolta
num lençol branco em suas dobras leves,
pus junto dela algumas rosas breves
e a lembrança represa ficou solta

e foi à desfilada. De repente,
a minha mãe já não estava morta:
era o vulto que à noite se recorta
na luz do corredor, se está doente

algum de nós, a mão que pousa e traz
algum sossego à fronte, a voz que chama
para o almoço, ou nos tira da cama,
quem nos trata das roupas, ou nos faz,

bolos de anos e as malas, na partida,
e a quem a voz tremia à despedida.

3. agora deu-se à terra o que é da terra

agora deu-se à terra o que é da terra
e as flores amontoam-se em sinal
de ser fugaz a vida, sobre a cal.
e enquanto cada dia desaferra,

com seu sopro bravio virão ventos
e as gaivotas, levando-lhe outras vozes,
uivos do mar, pios, metamorfoses,
nada ela escutará nesses momentos.

haverá fumo e fogo, deslembranças,
ecos, recordações, nuvens, ruídos,
outros cortejos tristes, recolhidos,
ali por perto hão-de brincar crianças

num jogo descuidado, um grupo vence-o.
mas fica a minha mãe posta em silêncio.

4. agora dorme e vai ficar assim

agora dorme e vai ficar assim,
imóvel e coberta. Já regressa
o carro que avançava tão depressa
na estrada por que vou e por que vim

às tantas da manhã, e tresnoitados
meus irmãos aguardavam-me à chegada,
sem esperança ou alegria, sem mais nada,
senão minutos tensos e contados.

depois os rituais, o respirar
tão a custo, os membros que se arqueiam
e distendem, e os vultos que rodeiam
a muda sombra vindo devagar.

beijei-lhe a fronte e fiz-lhe um leve afago:
do pouco que levei, tudo o que trago.

5. poderá ter morrido, ressuscita

poderá ter morrido, ressuscita
neste lugar humano, pobre fio
de água verbal que vai a medo, hesita,
e teme desmedir-se como um rio.

e muita coisa nele se derrama,
dita e não dita, pressentida, densas
aluviões, emaranhada trama
de obscuras raízes e presenças.

virão dias, semanas, meses, anos,
e os ciclos dos astros indiferentes,
mover-se-ão na mesma os oceanos
e as placas que sustentam continentes.

mola do mundo, o coração aviva
a chama desta lâmpada votiva.

in 'Antologia Poética'
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E, por fim, inconformado com a destruição da língua portuguesa, mercê dum "Acordo" que ele nunca reconheceu deixou-nos, expressa deste modo, a sua imensa discordância, embrulhada neste lamento:


lamento para a língua portuguesa


não és mais do que as outras, mas és nossa,
e crescemos em ti. nem se imagina
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, mera aspirina,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e repentina.
mas é o teu país que te destroça,
o teu próprio país quer-te esquecer
e a sua condição te contamina
e no seu dia-a-dia te assassina.
mostras por ti o que lhe vais fazer:
vai-se por cá mingando e desistindo,
e desde ti nos deitas a perder
e fazes com que fuja o teu poder
enquanto o mundo vai de nós fugindo:
ruiu a casa que és do nosso ser
e este anda por isso desavindo
connosco, no sentir e no entender,
mas sem que a desavença nos importe
nós já falamos nem sequer fingindo
que só ruínas vamos repetindo.
talvez seja o processo ou o desnorte
que mostra como é realidade
a relação da língua com a morte,
o nó que faz com ela e que entrecorte
a corrente da vida na cidade.
mais valia que fossem de outra sorte
em cada um a força da vontade
e tão filosofais melancolias
nessa escusada busca da verdade,
e que a ti nos prendesse melhor grade.
bem que ao longo do tempo ensurdecias,
nublando-se entre nós os teus cristais,
e entre gentes remotas descobrias
o que não eram notas tropicais
mas coisas tuas que não tinhas mais,
perdidas no enredar das nossas vias
por desvairados, lúgubres sinais,
mísera sorte, estranha condição,
mas cá e lá do que eras tu te esvais,
por ser combate de armas desiguais.
matam-te a casa, a escola, a profissão,
a técnica, a ciência, a propaganda,
o discurso político, a paixão
de estranhas novidades, a ciranda
de violência alvar que não abranda
entre rádios, jornais, televisão.
e toda a gente o diz, mesmo essa que anda
por tal degradação tão mais feliz
que o repete por luxo e não comanda,
com o bafo de hienas dos covis,
mais que uma vela vã nos ventos panda
cheia do podre cheiro a que tresanda.
foste memória, música e matriz
de um áspero combate: apreender
e dominar o mundo e as mais subtis
equações em que é igual a xis
qualquer das dimensões do conhecer,
dizer de amor e morte, e a quem quis
e soube utilizar-te, do viver,
do mais simples viver quotidiano,
de ilusões e silêncios, desengano,
sombras e luz, risadas e prazer
e dor e sofrimento, e de ano a ano,
passarem aves, ceifas, estações,
o trabalho, o sossego, o tempo insano
do sobressalto a vir a todo o pano,
e bonanças também e tais razões
que no mundo costumam suceder
e deslumbram na só variedade
de seu modo, lugar e qualidade,
e coisas certas, inexactidões,
venturas, infortúnios, cativeiros,
e paisagens e luas e monções,
e os caminhos da terra a percorrer,
e arados, atrelagens e veleiros,
pedacinhos de conchas, verde jade,
doces luminescências e luzeiros,
que podias dizer e desdizer
no teu corpo de tempo e liberdade.
agora que és refugo e cicatriz
esperança nenhuma hás-de manter:
o teu próprio domínio foi proscrito,
laje de lousa gasta em que algum giz
se esborratou informe em borrões vis.
de assim acontecer, ficou-te o mito
de haver milhões que te uivam triunfantes
na raiva e na oração, no amor, no grito
de desespero, mas foi noutro atrito
que tu partiste até as próprias jantes
nos estradões da história: estava escrito
que iam desconjuntar-te os teus falantes
na terra em que nasceste, eu acredito
que te fizeram avaria grossa.
não rodarás nas rotas como dantes,
quer murmures, escrevas, fales, cantes,
mas apesar de tudo ainda és nossa,
e crescemos em ti. nem imaginas
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, vãs aspirinas,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vidas novas repentinas.
enredada em vilezas, ódios, troça,
no teu próprio país te contaminas
e é dele essa miséria que te roça.
mas com o que te resta me iluminas.

 in "Antologia dos Sessenta Anos"


A Tolerância


O problema da tolerância ao pôr-se, apenas, em questões opinativas leva-nos a concluir que estas conduzem o homem a ter sobre ele duas atitudes em confronto e de sinal contrário: uma de respeito e amor pelo outro, ainda que se tenha opinião contrária, e outra de falsa concordância, onde o amor e o respeito cedem cobardemente os seus atributos ao fingimento.

Entende-se o antagonismo, a partir do momento em que nos dispomos  a reflectir sobre o sentido da palavra – tolerância – pois, o que chega ao nosso entendimento, não é apenas o seu significado académico: consentir, desculpar, admitir, mas a par disto e como sentido plebeu, ela também é entendida como uma  fraqueza, um desleixo, um deixa andar, um não ligar e, até, significando um desinteresse onde falta todo e qualquer sentimento humano.
Tolerância é isto, no bom e mau sentido, mas é algo mais.

Ultrapassa estas duas concepções contrárias, assumindo-se como uma virtude serena do homem calmo, cheio por dentro de uma grande paz interior que advém do equilíbrio que permite estar atento a tudo quanto se passa ao seu redor, donde lhe é facultada a serenidade quanto tem de agir e tirar conclusões justas em questões onde o julgamento humano  - falho como é – tem de ter o melhor dos desempenhos para não ferir a sensibilidade do outro.
Aqui a tolerância está carregada de amor humano ou de simples amizade.

A prudência não pode, por este motivo, de estar presente na virtude de julgar, reflectindo e interiorizando cada acontecimento, sendo a cautela onde ela assenta a sua almofada, tendo-se como certo que todo aquele que age à revelia destes princípios corre o risco de ser um falso tolerante, admitindo o deixa andar ou o não ligar e outros modos, agindo-se por comodismo, fazendo-se da tolerância um engano sobre si mesmo e sobre o outro, e o que é muito grave, fazendo dela uma caricatura.

Tolerar, pressupõe, sobretudo, respeito pelo outro, devendo ser sempre um acto reflexo da amizade ou do amor que obriga aquele que usa de tolerância a raciocinar para compreender o outro na procura de o ajudar. A tolerância é, deste modo, o primeiro dos caminhos para o trazer o à observância do que é aceitável na discussão das ideias e, até, do ponto de vista espiritual, um modo o de fazer vir ao encontro do que é normal na vivência adulta entre pessoas, mas tendo sempre presente que as verdades humanas são sempre relativas, sendo apenas imutáveis os princípios da esfera divina.

É, neste ponto que cabe ao homem tolerante ser alguém de coração aberto.
Alguém, que normalmente esconde uma alma acolhedora, que não repele, mas acarinha, virtudes que estando acima do julgamento sumário – tantas vezes usado -  faz dele um elo humano de tal modo forte que ao aceitar as ideias do outro, embora diferentes das suas, ao agir assim, o faz,  por sentir brilhar nele luzes de sinceridade.
Tolerância é compreender que o outro que caminha ao nosso lado é “ele” com todos os seus defeitos e virtudes, e não um outro“eu”, querendo por força que ele comungue das minhas ideias, mas, ao invés, respeitando as suas diferenças e aceitando-as, fazendo um esforço diário para compreender o porquê das suas opiniões contrárias.

Apesar disto, as expressões “ isso não é comigo” ou “não posso endireitar o mundo” não podem fazer carreira entre os homens, porque uma e outra são sinais evidentes da demissão a que hoje assistimos, tolerando-se  de um modo que é falso -  e que mais não é -  que o resultado de pactos de desinteresse e  de cobardia e, sobretudo, de falta de respeito pelo outro, ao saber-se que um mundo melhor só pode ser construído pela tolerância sadia que ao aceitar as ideias do outro, não deixa, com sentido construtivo, de lhe fazer sentir a opinião diversa, para que do confronto das duas, possam, eventualmente, nascer os consensos necessários à concertação das coisas.

Mas tolerar pela demissão, nunca o façamos, porque é sempre uma fuga que não pode ser consentida ao homem verdadeiramente tolerante, pois é do esforço por compreender e aceitar o outro que crescem as amizades fortes e se enriquece o mundo a começar pela acção isolada de cada um que cumpre no grande palco da vida a sua missão interventiva na sociedade, tarefa de que ninguém está excluído.



A Disponibilidade



A disponibilidade pressupõe sempre a assunção de uma atitude de quem está no seu posto de vigia humano devidamente atento e pronto a partir, munido do farnel do amor para o levar a quem dele precise.

A vida do homem tem de ser uma atitude de serviço, pois como alguém disse, quem não vive para servir – isto é, para estar disponível – não serve para viver, fazendo desta postura um cartão de visita que se apresenta aos outros sem tocar o sino a rebate, mas com a humildade de quem tem consciência, que cada homem perante o seu igual se deve posicionar na expectativa de ser útil quando o momento se proporciona, pois só assim, a vida ganha o seu verdadeiro sentido.

Ser humano é ser solidário e só o é quem se mostra livre para dar, no pressuposto que quem está disponível se assemelha ao atleta com o pé em cima do risco da partida, atento para não o pisar - entendendo-se isto, em não hesitar ao primeiro impulso generoso da disponibilidade -  porque se o fizer, deixa que se imponha o egocentrismo feroz que não deixa abrir a flor humana que existe em cada homem.

É preciso estar pronto a partir, em cada dia, para a aventura do amor, numa viagem, cujo fim desde logo conhecido é saber-se que no fim da linha está alguém a necessitar de gentileza, algo que não pode – nem deve - ficar arredia da convivência social sem se correr o risco de afundar sem proveito o misto do humano e do divino que é um atributo de toda a criatura.

A disponibilidade, exige apenas, a coragem de se deixar soltar o lado bom que existe e é, em grande parte o que forma o homem e lhe dá o estatuto de ser superior na Obra da Criação, que lhe reserva como meta – onde é preciso chegar num dia qualquer - a arte de viver que  é o cumprir-se cada um em si mesmo, empunhando a bandeira da sua história com acções meritórias em prol de uma vivência no campo do gregário social, destino onde  cada um completa a sua humanidade, sendo deste modo, um avançar conhecendo do caminho a direcção mais importante: aquela que conduz o coração do homem, na certeza que cada um vive aqui e agora um destino que se prende a uma realidade escatológica, que é o caminho que o leva até uma objectividade que o ultrapassa, por estar para além da finitude temporal de cada destino terreno.

A disponibilidade assim entendida é uma dádiva sem espera de recompensa, pois só assim ganha sentido tudo quanto está para além desse desiderato que vai ganhando forma em cada dia, levando a construção do edifício do Infinito para onde tende a natureza humana, a colocar em cada acção um tijolo a mais.
A disponibilidade é, neste sentido, um dom que faz o homem sair de si mesmo e mergulhar no outro, bem dentro da sua própria história, na convicção serena que  todo o tempo dos seus dias não é, exclusivamente, de sua pertença, por haver desse mesmo tempo – que ele pode usar, se quiser, para proveito próprio – uma quota-parte que deve ser dado ao seu companheiro.

Difícil é aceitar e fazer isto.
É verdade. Vivemos um tempo ingrato em que a materialidade das condutas humanas, tem por norma, o entravar o princípio formoso da disponibilidade, um bem humano que não pode ser abandonado, pelo facto de ser um factor importante no concerto das sociedades, onde cada um deve deixar a migalha, por mais pequena que seja, do seu amor disponível a favor do outro.



O Compromisso



Quer queiramos ou não, dando ou não conta do que está a acontecer, cada homem está sempre em alguma posição ou em algum lugar, ocupando por isso, um espaço, seja ele de ordem espiritual ou de ordem física.
Um e outro condicionam a atitude, a luta, e até, os seus caminhos
Importa, por isso que façamos a nós mesmos algumas perguntas fundamentais:

Será que sabemos em profundidade o motivo da condição humana que nos leva a um  comprometimento consciente com os outros, dentro da cidade, ou agindo descomprometidamente com ela, refugiamo-nos na nossa própria ilha, auto-suficientes e arredados do mundo, longe de sermos – como devíamos ser - solidários com um mundo de que somos ínfimas partes, mas partes importantes?
Será que temos consciência disto? De sermos de tal modo importantes que ninguém pode ocupar o nosso lugar?

Atentemos nisto: quer queiramos, quer não, consciente ou inconscientemente, somos algo que existe para além da nós mesmos e de tal modo mergulhados neste mistério de existir, que não podemos escapar a um comprometimento com a vida que em cada dia nos interpela sobre  aquilo que somos e representamos na esfera de uma sobrenaturalidade que nos rege sem darmos por isso, mas que exige o comprometimento sadio com a sorte do outro.
Conscientes ou não desta realidade, somos chamados a acreditar em alguma coisa ou em alguém. É uma das leis da vida com a raiz mais profunda metida no amor que faz do homem uma criatura superior.

Ninguém se livra disto, o que sugere, desde logo, um compromisso da nossa vontade, seja com Deus ou com o homem, um facto que se não existir em cada um de nós como uma naturalidade,  é como se nós mesmos existíssemos sem vontade própria, acéfalos e amorfos.
Comprometer-se com a vida e com as outras criaturas é um sinal de fé, que pode não ter o sentido como normalmente é entendida do ponto de vista escatológico, mas não deixa de ter as ressonâncias teológicas que fazem de todo o homem alguém capaz de se comprometer com o amor que é preciso dar ao outro, que caminha por um capricho da sorte ao seu lado num dado tempo e lugar, no mundo, na convicção que é sempre, a partir de um dado tempo ou de um lugar qualquer que imerge a lei suprema que faz de tudo aquilo em que acreditamos – pelo nosso  compromisso consciente – uma verdade que torna  possível  a realização dos acontecimentos que dão sentido à vida e faz de tudo quanto fazemos, uma imagem do nosso comprometimento com a vida ou com o outro.

Mas, há que atender que o comprometimento consciente exige conhecimento, sabedoria e atenção às coisas e ao caminho a percorrer, pois é sempre do esforço exigente que resulta ou não, a certeza daquilo que fazemos, sabendo-se que a construção do mundo ou a sua destruição começa sempre pelo compromisso consciente ou não que o homem dá ao projecto da sua própria existência, pois é, pela acção isolada de cada um que se começam a construir  os edifícios colectivos das Nações, tão mais acertadamente, quando melhor e mais consciente for o compromisso de cada homem consigo mesmo e com a sociedade.


Martin Luther King Jr. - Um herói do nosso tempo





      Martin Luther King Jr. nasceu em Atlanta (EUA) em 14 de Janeiro de 1929 e veio a falecer, assassinado, em 4 de Abril de 1968, em Memphis (EUA).
Era filho do Rev. Martin Luther King e de Alberta Williams King.
Tendo como mestre espiritual Mahatma Gandhi, como ele, baseado em princípios da não violência para atingir os fins a que se propunha, conseguiu obter em 1960 a liberdade para os negros.

Martin Luther King Jr., desde muito cedo se passou a interessar pela constante violação dos direitos humanos nos EUA, tendo iniciado a sua luta pacífica em 1955 com o fim de obter justiça para todo o povo negro norte-americano, tendo como exemplo a abolição da escravatura conseguida por Abraham Lincoln, com o decreto presidencial de 1 de Janeiro de 1863, que ficou conhecido como a Proclamação da Emancipação, seguida por uma Emenda Constitucional, a 13.ª que proibiu a escravatura nos Estados Unidos da América.

Foi este facto histórico, tendo originado que 200.000 escravos nos territórios do Sul sob domínio confederado tivessem sido eram libertos até ao fim da guerra, que lhe serviu de bandeira para levar a cabo os seus intentos, tendo presente que a lei de 1863, apesar da sua benignidade, não havia acabado com a discriminação, especialmente nos estados do Sul, onde na época, nenhum negro podia frequentar um restaurante que estivesse  reservado a brancos ou sentar-se em lugares reservados a eles e, muito embora, o que havia sido proclamado por Abraham Lincoln, em favor dos negros, todas as terras eram, exclusivamente, propriedade dos brancos, donde resultava que embora liberto da escravidão o povo negro manteve-se pobre e perseguido.
Martin Luther King Jr. nasceu sessenta anos depois destes factos.

Desde jovem lia e memorizava a Bíblia Sagrada, ajudando o pai na Igreja Baptista Ebenezer e como aconteceu com todas os seus companheiros de infância, cresceu profundamente marcado pelos preconceitos raciais.
Na faculdade, a Morehouse College, sabendo que ali eram incentivados os assuntos que envolviam os problemas sociais, e que esta acreditava através do empenho do seu Director, que a Igreja tinha um papel decisivo na luta que era preciso travar, deixou de lado a ideia de ser médico ou advogado, tendo encaminhado os estudos noutra via e que o viria a ordenar pastor aos 17 anos, tendo iniciado o seu múnus pastoral na Igreja de seu pai, tendo, dois anos depois ingressado no Seminário de Crozer, na Pensilvânia, um passo que viria a ser decisivo na sua vida, pois foi a partir daqui, tendo tomado conhecimento e lido teólogos famosos e filósofos da estirpe de Henry Thoreau, um declarado abolicionista, que ele, após a sua formatura em Teologia e doutoramento em 1955, na Universidade de Boston, deu início à sua saga com cariz público a favor doa homens negros.

É, então que conhece, Coretta Scott, uma estudante de Música com quem se casou em 18 de Junho de 1953, tendo no ano seguinte aceitado o convite para pastorear a Igreja Baptista situada na Avenida Dexter, em Montgomery, Alabama, um dos estados do Sul que era um dos focos maiores conflitos dos raciais que existiam dispersos pelo País.
O Reverendo King, como passou a ser conhecido, insurgia-se vendo a comunidade negra submissa e sem força para lutar contra as injustiças de uma sociedade aburguesada e impiedosa, que entre as mais descaradas discriminações, só dava o lugar de motoristas dos transportes públicos a homens brancos, um facto que por ser tão evidente, chocava a sua sensibilidade, com a agravante de em qualquer meio de transporte,  apenas os últimos bancos eram destinados aos negros.
Aconteceu que em 1 de Dezembro de 1955, Rosa Parks, uma rapariga negra embarcada num dos autocarros públicos, em  Montgomery, instada por um branco para que ela lhe desse o lugar se recusou terminantemente a fazê-lo, um facto que implicou a sua prisão o que levou o  Reverendo King e outros seus seguidores a iniciar a 5 do mesmo mês um boicote contra os serviços rodoviários que durou cerca de uma ano, sublevação que haveria de levar as autoridades a prender 89 pessoas negras, incluindo o próprio Martin Luther King.
Mas esta luta em Montgomery haveria de dar os seus frutos.

Outros movimentos começaram e espalhar-se protestando vivamente contra a discriminação racial no Sul, tornando-se como um importante e decisivo ponto de partida da cruzada de Luther King, que sem uma vez sequer, ter usado ou instigado a assunção de meios violentos, em seu lugar deu que surgissem acções de amor e oração, tendo os seus discursos um cariz civilista e sempre contra qualquer violência física.
Fez publicar, de sua autoria, um livro importante: A Caminho da Liberdade, que terá tido uma importância decisiva no fim da segregação racial em escolas, restaurantes, bares e outros locais, tendo, por fim a sua acção sido fundamental na decisão do governo dos EUA de tornar prioritária a questão dos direitos civis.
Em 28 de agosto de 1963 este homem de eleição – um autêntico profeta da paz – conseguiu que se reunissem 250 mil pessoas numa marcha sobre Washington.
Nas escadarias do Lincoln Memorial, precisamente no local onde se encontra a estátua do Presidente americano que acabou com a escravatura dos negros, preferiu aquele que foi tido como o maior discurso do movimento pelos direitos civis: I had a dream  - Eu tive um sonho – um acontecimento que o faria capa da revista Time de 3 de janeiro de 1964.
Apesar de continuarem as execuções de negros e outros actos de violência contra eles, o que é verdade é que a história tomou um rumo diferente, conjugando-se a pouco e pouco a favor da causa de Luther King.
Aconteceu, isto no dia 2 de Julho de 1964.

O Presidente Lyndon Johnson assinou o Acto dos Direitos Civis e discursando perante as câmaras da televisão, afirmou: Aqueles que antes eram iguais perante Deus serão agora iguais nas secções eleitorais, nas salas de aula, nas fábricas e nos hotéis, nos restaurantes, cinemas e outros lugares que prestem serviços ao público.
Tendo em conta as palavras presidenciais, em outubro de 1964, Luther King após ter recebido o Prémio Nobel da Paz e cujo prémio, no valor de 54.123 dólares destinou em favor da campanha dos direitos cívicos dos negros, iniciou, de imediato uma nova luta a favor de uma campanha de registo nas juntas eleitorais.
A luta deste herói do século XX, conduziu a que o governo federal tenha intervindo, tendo em consequência  e presidente Lyndon Johnson assinado, em 1965 a Carta dos Direitos do Voto.

As convulsões sociais de algum cunho radical, apareceram, entretanto.
Em abril de 1968, no meio de algumas manifestações violentas do movimento Black Power - Poder Negro - em cidades como Chicago, Boston, Los Angeles e Filadélfia, Martin Luther King foi a Memphis para dar apoio a trabalhadores negros que lutavam pela igualdade salarial.
No dia 3 de abril, na véspera do protesto, ele proferiu seu último discurso, que como todos teve algo de profético - I see the promise land - Eu vejo a terra prometida . Fê-lo na sede da Igreja de Deus em Cristo, a maior denominação pentecostal americana africana dos EUA.
No dia 4, à noite, Luther King estava no terraço do hotel no momento em que foi atingido no pescoço por um tiro disparado por James Earl Ray, a partir de um telhado de um prédio vizinho.
Gravemente ferido, embora levado urgentemente para o hospital, morreu uma hora depois.
Tina 39 anos.
O seu funeral realizado no dia 8 de Abril, acompanhado por sua mulher e seus quatro filhos, foi  transmitido pela TV para 120 milhões de americanos.
Sobre a sepultura e gravadas sobra a pedra mármore encontram-se as palavras de uma velha canção de escravos: Free at last, free at last/Thank God Almighty/I´m free at last  - Finalmente livre, finalmente livre/Obrigado Deus Todo-Poderoso/Finalmente sou livre.

O Presidente Jimmy Carter, a título póstumo, atribuiu-lhe a Medalha da Liberdade.


Maio de 1773: fim da discriminação entre cristãos velhos e novos




1 - Antecedentes históricos que assinalam a presença dos judeus na Ibéria

A presença dos judeus na Península Ibérica remonta ao tempo do sucessor de David, e filho da sua concubina Betsabea, o rei Salomão (970 a 931 a. C.) tendo estes chegado  com alguns comerciantes de Tiro e, ao mesmo tempo com os  fenícios, os “donos do mar” e, mais tarde, no tempo do rei da Babilónia, Nabucodonozor (605 a 562 a.C.) que em 562 e 568 invadiu Jerusalém, tendo na última das invectivas deportado o seu povo para o cativeiro babilónico, tendo muitos deles fugido e ficado dispersos pelo mundo, havendo muitos rumado para a Península Ibérica.
Após a derrota de Cartago em consequência da terceira Guerra Púnica (1) (149-146 a.C.) os romanos assumiram o controle da Península com o domínio sobre aquela posição estratégica a que se seguiu a derrota de Numância, por Cipião, o Africano, tendo todo o território que hoje forma Portugal e Espanha ficado sob o domínio de Júlio César.

Nesse tempo miIlhares de famílias da tribo de Judá e da tribo de Benjamim foram deportadas pelos romanos que dominavam o Oriente Médio para engrossar os habitantes da Península, já então romanizada, indo muitas essas famílias para a Galiza, o território onde, séculos depois, teriam origem as vicissitudes históricas que haveriam e estar na origem do nascimento de Portugal.
Há relatos do séc. I d. C. que asseguram que cerca de cinquenta mil judeus se estabeleceram no Sul da Península e, mais tarde, reforçando esta realidade histórica, os Concílios da Igreja Católica de Orleãs (538 d.C) e Toledo (633 d.C.) fazem alusão à presença judaica neste extremo ocidental do mundo.
Os judeus constituíram, desse modo, uma fracção importante da população ibérica, convivendo  e cultivando as tradições, língua e religião desde muito antes dos cartagineses e dos romanos dominarem a península.
Após o colapso do Império Romano do Ocidente em 476 d.C., os bárbaros cristãos (geralmente germanos e eslavos cristianizados recentemente) passaram a dominar a região dando fim à Civilização Ocidental ou Antiguidade Clássica e iniciando com esse passo histórico a chamada Idade Média.

Sob a dominação em 409 dos Suevos que tinham os seus governantes a residir em, ou perto de Bracara Augusta (Braga) e  Portucale, (Porto) e dominando com os Vândalos toda a faixa norte de Portugal e abrangendo todo o território da actual Galiza a situação dos judeus foi relativamente estável, tendo-se degradado as suas condições de vida com a hegemonia visigótica sobre estes dois  povos e sobre os Alanos, situados mais ao Sul,  povos com quem foi tentada uma unificação não concretizada nesse período, pelo facto dos visigodos professarem o arianismo (2) e eles o catolicismo, razão que adiou  esta fusão até 589, ano em que o rei Recaredo, por ocasião do Concílio de Toledo abjurou o arianismo e  proclamou o catolicismo como religião oficial da Espanha visigótica, decisão que causou grande perturbação entre os judeus, motivo suficiente para passarem a ser perseguidos, continuando assim em 702 com Egica e com Vitiza em 710, até a Ibéria ter sido derrotada pelos árabes mulçumanos em Abril de 711, quando Tarik Ibn Ziad, comandando sete mil homens oriundos da etnia berber, vindos do norte de África, cruzou o Estreito de Gibraltar e invadiu  a Espanha visigótica, tendo morto  Rodrigo, o seu último rei e instalando-se em Códoba.
Depois da invasão árabe, os judeus voltaram a ser bem tratados pelos governantes da maior parte dos reinos árabes. Desde que pagassem pontualmente seus impostos e não afrontassem os dogmas islâmicos, poderiam viver em paz.

2 – Desde o advento da nacionalidade portuguesa até à sua conversão forçada

Os muçulmanos berberes  haviam conquistado toda a Península no séc. XI, com a excepção de uma região montanhosa situada na Serra das Astúrias onde se foi refugiar Pelágio, o príncipe godo que esteve na origem da Reconquista cristã a que os seus sucessores deram incremento, contando-se nesse mesmo século com a fundação dos reinos de Astúrias, Oviedo, Leão, Navarra, Aragão, Castela e os condados de Portucalle (em Portugal) e Barcelona.
Nesse afã, em 1085 foi tomada a cidade de Toledo e no ano de 1128, D. Afonso Henriques declarou a independência de Portugal, após a expulsão dos mouros do condado.
Ao tomar  o importante bastião da moirama que era Santarém, no ano de 1147, o nosso primeiro rei encontrou ali populosas e trabalhadoras colónias de gente judaica que continuaram a conviver com os habitantes portugueses, que lhes dedicavam, ao invés do que acontecia em Espanha, uma melhor aceitação social, porque lá, eram ferozes os ataques às judiarias, como aconteceu em Toledo em 1355, em Palma de Maiorca, em 1391 e em Sevilha, no mesmo ano, tendo a institucionalização da Inquisição, em 1478, obrigado a fugir para Portugal muitos milhares de judeus.

Segundo alguns autores entre 90 a 130 mil passaram a fronteira, estando entre eles, Isaac Abravanel que foi ministro de Isabel I de Inglaterra e Abraão Zacuto (3), que foi um importante astrónomo.
Há quem estime que a população judaica em Portugal no século XV atingia uma quarta parte da população portuguesa e foi essa massa ingente de fugitivos e desenraizados que originou que entre nós começasse a haver algum ódio, desconfiança e agressividade contra eles, ao ponto do rei D. João II, ter feito um decreto em que o Estado lucrava por cabeça uma dada quantia em dinheiro da época, em troca da permanência dos judeus castelhanos entre nós, muitos deles tornados escravos da fidalguia lusa.
Apesar de tudo isto, no governo de D. João II (1481-1495) os judeus gozaram de alguns benefícios, como foi a medida régia de protecção desta minoria contra eventuais levantamentos populares, para que não acontecesse entre nós a bestialidade que aconteceu em Espanha.

3 – A conversão forçada  (cristãos novos)

          Em 1495, D. Manuel I assumiu o trono português e concedeu liberdade aos judeus castelhanos que haviam sido escravizados, mas uma cláusula do seu casamento com a princesa Isabel, filha dos reis católicos de Espanha, impunha a expulsão dos hereges que habitavam em Portugal – judeus e mouros – o que seria um desastre económico, sobretudo em relação aos judeus. A diplomacia portuguesa, por cartas, tentou convencer a princesa Isabel a abandonar aquela cláusula, mas sem sucesso.
Vencida a vontade portuguesa, em 5 de Dezembro de 1496, D. Manuel I assinou o decreto de expulsão dos judeus e mouros de Portugal, tendo-se dado um prazo que terminava em 31 de Outubro de 1497.
A todos os judeus, porém, sob pena de morte e confisco dos seus bens foi dada a opção do desterro ou o da sua conversão, com o necessário baptismo segundo as regras da Igreja Católica.

Não houve, por parte deles uma grande aceitação, preparando-se muitos para abandonar o Reino no cumprimento da sua sina de pessoas errantes. O rei ao aperceber-se que os judeus prefeririam deixar o Reino que converter-se, para impossibilitar a emigração ordenou que se fechassem todos os portos com excepção do porto de Lisboa, o que originou uma enorme concentração da nação judaica na capital portuguesa.
Tomaram-se, então medidas de drástica.
Desse modo, em  Abril de 1497 foi dada a ordem de embargo dos filhos, menores de 14 anos daqueles que obstinados à conversão ao catolicismo, preferissem sair do reino, devendo as crianças ser distribuídas pelas cidades e aldeias com o fim de serem baptizadas e criadas por famílias católicas.
Este decreto desumano, logo que transpirou, criou uma onda de aflição entre mães e pais que estavam na iminência de perder os seus filhos, o que levou, uns a optaram por converter-se para não terem suas famílias despedaçadas, mas outros, desesperados, preferiram matar seus filhos e em seguida suicidarem-se ao invés de os entregar aos oficiais do rei, para a apostasia.

E assim, crianças foram sufocadas pelos pais num abraço de adeus, outras foram atiradas em poços. Grande parte dos judeus foi vítima da violência, tendo seus filhos raptados e levados ao baptismo para serem em seguida distribuídos entre a população católica.
Em Outubro de 1497, estando a findar o prazo concedido no Decreto da conversão forçada, em Lisboa  encontravam-se  mais de 20  homens e mulheres a quem foi dito que os seus filhos já se haviam convertido e que, se quisessem viver em sua companhia, assim também deviam fazer.
Como não acederam  foi usada com eles a mesma violência que havia sido usado com seus filhos, ou seja, a conversão forçada.
Era a vez dos adultos e velhos, levados à força à pia baptismal.
Deram-se, assim, em Lisboa  os chamados baptismos em massa e reproduzidos em várias partes do Reino, fazendo pela força  cristãos a todos os judeus que não puderam abandonar Portugal.    
     
Consumado o plano de expulsar os judeus, mas mantê-los no Reino pela conversão, D. Manuel – que autorizara que os conversos tivessem os mesmos direitos que todos os outros vassalos - poderia então informar a princesa Isabel de Espanha que já não mais havia hereges em Portugal.        
 O baptismo forçado, no entanto, trouxe a heresia para dentro do catolicismo, não só porque os cristãos novos continuaram a ser vistos como judeus, mas porque passaram a praticar o judaísmo no segredo de seus lares, mesmo que professando publicamente a fé católica.
Surgiram assim os chamados marranos.

4 – A tragédia dos judeus até ao Decreto que instituíu a abolição entre cristãos velhos e cristãos novos.

A riqueza do povo judeu adveniente, em grande parte da prática da usura e de arrendadores de impostos atraíram sobre eles o ódio do povo, como aconteceu nos tumultos de Lisboa em 1504 e em Évora no ano seguinte e novamente em Lisboa em 1506, com a morte de muitos cristãos novos.
O rei D. Manuel I, em 1515 dá o primeiro passo para o estabelecimento da Inquisição em Portugal, mas que apenas será concedida a D. João III, pretendendo este rei  uma Inquisição de Estado, que sendo um tribunal régio, embora contasse com as armas eclesiásticas, os confiscos impostos aos condenados reverteriam a favor da Coroa e não da Igreja.

A pretensão, vista pela Cúria romana como um meio do poder real expoliar os judeus, como se fazia em Espanha, não foi aceite e só em 23 de Maio de 1536, veio a acontecer – sem aquela pretensão – mas  com a finalidade dos inquisidores procederem contra os cristãos novos conversos e que haviam regressado aos ritos judaicos.
Em tempos do rei D. Sebastião, os autos de fé eram usados pelos pregadores para instigarem o povo contra os cristãos novos o que levava estes a querer abandonar Portugal, um facto que levou o rei em 1576 a revogar a proibição de saída do tempo do rei seu antecessor, uma graça continuada pelo cardeal D. Henrique e pela dominação filipina (1601) que a viria a proibir no decorrer do ano de 1610.

Nos tempos da restauração, o novo poder não foi favorável aos cristãos novos, tendo-lhes valido a autoridade do Padre António Vieira que fez mudar a atitude hostil da Coroa portuguesa, um facto que muito pesou a desfavor do grande orador por parte dos inquisidores, tendo provocado as primeiras desavenças entre a Companhia de Jesus e o tribunal do Santo Ofício.
Tendo os judeus mais influentes obtido junto da Cúria romana alguma comiseração para o estado da sua miserável condição social,  nos reinados de D. Afonso VI e D. Pedro II assistiu-se a que os queixumes dos perseguidos ao encontrarem eco junto dos Bispos que assistiam os Papas, Clemente X (1670-1676) e Inocêncio XI (1676-1689) levaram a Cúria a ser desfavorável aos métodos dos inquisidores, que os tratavam cristãos novos como escravos.
Contudo as recomendações vindas de Roma foram esquecidas pelos inquisidores que actuavam em Portugal, tendo a perseguição entrado numa fase mais violenta com a chegada de D. João V  em 1706 ao ceptro real.

Os cárceres do Santo Ofício estavam pejados de judeus provindos de todas as partes de Portugal, sendo muitos deles moradores da Covilhã, Fundão, Idanha e Guarda, pois assim figuravam nos autos inquisitoriais.
Mas de todas as províncias, as que mais sofreram com o Santo Ofício foram as Beiras e Trás-os-Montes.
Aconteceu, porém, que em meados do século XVIII, reinando D. José I, o Iluminismo (4) dava passos de gigante contra a intolerância religiosa, tendo levado homens como D. Luís da Cunha (5) a ter opinião formada sobre o mal que era atribuído aos perseguidos por questões de fé,  afirmando que ele – o mal social - estava mais na distinção ou discriminação social que era feita entre cristãos velhos e cristãos novos e que retirava a estes cargos sociais a que poderiam ter acesso.
Outro vulto importante na mesma causa foi Ribeiro Sanches (6) manifestando-se este homem notável contra aos autos de fé, e tendo os seus escritos encontrado eco no espírito do Marquês de Pombal que foi gradualmente preparando o terreno para se acabar com a diferença entre cristãos cristãos velhos e cristãos novos.
Com esse intuito ordenou que fossem defendidas as famílias apontadas como tendo sangue judaico, tendo mandado destruir em 1768 todos os documentos referentes aos seus membros e onde figurassem os tributos e donativos a que estavam obrigados os descendentes de todos aqueles que se haviam convertido, tendo de seguida virado a sua atenção para as famílias fidalgas puritanas, ou seja, para todas aquelas que se orgulhavam dos seus membros nunca terem tido relações ou matrimónios com cristãos novos, tendo por decreto imposto a essas mesmas famílias que se orgulhavam do seu puritanismo e tendo filhos ou filhas  em idade de casar, de ajustarem no prazo de quatro meses os seus casamentos com membros das famílias até então excluídas das suas alianças, publicando-se finalmente, em Maio de 1773 a lei que extinguiu de vez a separação entre cristãos velhos e cristãos novos, declarando-se estes aptos a receber quaisquer postos e honras, como os demais portugueses.

Sobre a fidalguia puritana que se honrava de nunca ter tido relações sexuais com cristãs-novas, tal facto não é, no todo, uma verdade, pois na dinastia de Avis, D. Luís, infante de Portugal, filho de D. Manuel I, casou-se com Violante Gomes, consórcio de que nasceu D. António, Prior do Crato. (7)
Antes, D. Joao I, rei de Portugal teve um caso com  Inês Pires, tendo deste relacionamento nascido dois filhos: D. Beatriz (1382-1439)  e D. Afonso (1380-1461) que veio a ser o 8º duque de Barcelos e o 1º duque de Bragança, descendendo, deste modo, de uma cristã nova toda a dinastia dos Braganças donde imergiu em 1640 o rei D. João IV.
Os tempos haviam mudado e não mais a população plebeia foi açirrada contra os cristãos novos.
Este decreto-lei do Marquês de Pombal, o controverso ministro de D. José I, que foi um carrasco no julgamento sumário dos Távoras, impiedosamente torturados com requintes de malvadez, acabou, finalmente com uma injustiça cometida contra homens e mulheres hebreus, que a fazer valer a história que ao registar a sua diáspora para a Península Ibérica a partir do rei Salomão, faz que os membros deste povo tenham sido escravizados e malqueridos durante cerca de 2.700 anos neste canto ocidental do mundo, o que não deixa de ser uma vergonha histórica para Portugal.
Lembrar isto no mês em que se comemora o aniversário da lei que os libertou é um dever moral e intelectual.






(1) - O termo púnico, do latim punicus, vem da palavra poeni, nome que os romanos davam aos cartagineses, os descendentes dos fenícios (em latim, phoenician).

(2) - Nome dado à doutrina do padre heresiarca, Ário (256-336) defensor de uma crença que entendia que Jesus Cristo possuía uma divindade secundária e subordinada, não sendo Deus em plenitude e negava, por esse motivo,  a perfeita igualdade entre as três Pessoas da Santíssima Trindade.

(3)  - Abraham bar Samuel Abraham Zacut, conhecido em Portugal por Abraão Zacuto, terá nascido em Salamanca em meados do século XV, onde teria ensinado astrologia e astronomia — como se sabe, na altura as duas disciplinas confundiam-se. Não há muitas certezas sobre a sua actividade em Salamanca, existindo referências, não confirmadas, ao facto de ter estudado e leccionado na Universidade de Salamanca. Teve que se refugiar em Lisboa na sequência da promulgação do decreto dos reis católicos, Isabel e Fernando, reis de Castela e Aragão, que obrigava os judeus à conversão ao cristianismo ou ao exílio. Há notícias de que já estaria em Portugal em Junho de 1493, ao serviço do rei D.João II.

(4) - Nos finais do século XVII e no século XVIII dão-se na Europa duas revoluções que representam a afirmação da burguesia como força política e económica dominante em alguns países europeus. No espaço de tempo que medeia estes acontecimentos, decorre o chamado «Século das Luzes», a época do Iluminismo, caracterizada por uma profunda crítica das instituições e princípios até então reinantes: o regime feudal-absolutista, a intolerância religiosa, a supremacia da fé e da tradição sobre a razão e o progresso.

(5) - D. Luís da Cunha (1662-1740), foi um hábil diplomata,  arcedíago da Sé de Évora e sócio da Academia Real de História

(6) - Ribeiro Sanches (António Nunes)  - (1699-1783) era natural de Penamacor. Médico distinto fez carreira no estrangeiro, mas isso não o impediu de ser um notável colaborador e defensor das idéias do Marquês de Pombal sobre o ensino superior

(7) - D. António, prior do Crato (1531-1595) foi um príncipe bastardo pretendente ao trono português. O pai, D. Luís era irmão de D. João III. Feito prisioneiro em Alcácer Quibir, conseguiu ser resgatado e na volta a Portugal passou a pretender o trono, situação a que se opôs o cardeal D. Henrique, sucessor de D. Sebastião. Após a morte do cardeal  fez-se aclamar rei  e enfretou  os espanhóis, mas sem ter o apoio da nobreza e do clero. Derrotado, abandonou Portugal, tendo morrido em França.