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quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

No Paraíso dos Doidos!



Gravura do jornal "O Zé" de 19 de Dezembro de 1911

No Paraíso dos Doidos

O jornal de então, embora republicano, mas farto da discórdia parlamentar chamou a esta gravura - No Paraíso dos Doidos - pelo facto de só ter passado um ano sobre a implantação da República e os políticos não se entenderem, até pelo contrário, desentenderem-se ao ponto de se socarem entre eles em vez de defender a República, que tanto havia custado a conquistar.

Rolaram os anos...

Conquistamos a Democracia - também com muito custo - e inauguramos a III República, porém, até parece que podemos manter válido o antigo título deste velha gravura, porque - embora os actuais políticos sejam mais corteses e não andem aos socos - não há maneira dos Partidos mais representativos do povo que somos se entenderem para a salvação da III República, seguindo o desvario rufia dos seus antigos pares, trocando entre si "socos" de pouco senso.

Será que estamos, olhando o que se passa, num novo "Paraíso de Doidos"?
Faço votos que o Ano Novo de 2015 que não tarda aí, traga mais entendimento ao PSD e ao PS.

Chega de doidice!
A Pátria, tal como aparece na velha gravura, continua de braços cruzados sem saber o que fazer de tanta falta de senso.

Esta troca de correspondência...



Gravura de o jornal "O Zé" de 10 de Janeiro de 1911


Dos dois protagonistas o que tem orelhas de burro e olha para o Livro do Código Penal - que não interpreta como o outro quer, é a Justiça - enquanto o outro, com modos ameaçadores e de azorrague na mão, como modos de quem explica o que deve ser feito é todo aquele que quer por entraves na balança da Justiça, desequilibrando-a para o lado que lhe convém.

Os protagonistas são de sempre...
E não há democracia que seja capaz de lhes por juízo!


Resposta de Mário Soares à carta de José Sócrates

A resposta de Mário Soares foi enviada cerca de 15 dias depois e o antigo governante diz a Sócrates que o admira “pela sua honradez, valentia e amizade”, acusando aqueles que “sem qualquer julgamento prévio, o querem destruir política e eticamente”. Soares considera que a intervenção de Joana Marques Vidal de não ter “sentido democrático” e o juiz Carlos Alexandre de tratar “vergonhosamente” o antigo primeiro-ministro. O fundador do PS diz ainda que Sócrates é “uma grande figura do socialismo democrático”.

in. "Observador" 29 de Dezembro de 2014

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A troca de correspondência foi sempre um gesto salutar e de amizade entre pessoas anónimas que dela não deixaram rasto público, ao invés do que tem acontecido com figuras gradas da Cultura nacional ou não, cujas cartas - quase sempre publicadas postumamente - são um regalo intelectual a sua leitura.

A troca de correspondência entre José Sócrates e Mário Soares, a que acresce o facto anómalo da mesma ser publicada, como aconteceu no Jornal de Noticias desta última segunda-feira, prova à evidência que aquelas cartas - para além da amizade que as une - têm conteúdo político, algo que ficando mal aos dois correspondentes, fica pior em Mário Soares - cujo estatuto, embora não oficializado de senador da República derivado dos altos cargos que desempenhou - o deixa extremamente mal, quando duvida que a Procuradora Geral da República, Joana Marques Vidal não tem "sentido democrático" e que o Juiz, Carlos Alexandre trata "vergonhosamente" José Sócrates.

Mário Soares, a quem, entre outros, devo o facto de estar a escrever esta "postagem" - e isso não posso esquecer - está a exagerar nos pecadilhos de uma linguagem que pelos vistos, põe a descrédito figuras cimeiras da Justiça que lhe deviam merecer mais contenção, porque todo aquele que não pensa e age como eu quero não pode ser assim tratado, revelando isto, que Mário Soares está a exorbitar mais uma vez ao intrometer-se em campos onde a entrada lhe devia ser vedada, se ele antentasse naquilo que foi e, verdadeiramente - sem ter perdido a honra das funções que desempenhou - perdeu a noção que elas impõem a quem as desempenhou.

Apesar disso, não alinho com certos impropérios e má educação que vejo publicados em alguma "blogosfera", mas não posso - mais uma vez - deixar de apontar o meu desacordo com ele, chamando à colação este velho conceito de Pitágoras: A primeira lei do homem deve ser o respeito por si mesmo, por pensar que neste caso, como noutros bem recentes, Mário Soares , sem eu saber porquê, anda a desbaratar o respeito que devia merecer.

Por esse motivo, embora declare que o meu respeito por Mário Soares do ponto de vista político já não existe, interpretando Henri Amiel, mas sobretudo, respeitando-me a mim mesmo do ponto de vista da espiritualidade a que me sinto solidário, repito o que disse o filósofo suiço : Respeitar em cada homem o homem, se não for aquele que é, pelo menos o que ele poderia ser, que ele deveria ser.

O meu respeito está aqui: no homem que é Mário Soares, pela lei natural um homem igual a mim, mas pela lei secular, lamentar que o meu respeito por aquilo - que ele deveria ser - seja um respeito circunstancial, completamente esbatido pelas suas últimas atitudes, das quais esta última, pese, embora a amizade que possa ter por José Sócrates, que respeito, mas por julgar o facto insólito daquele homem que foi - pelo cargo de Presidente da República, o mais alto magistrado da Nação - dizer o que tem dito por aqueles que agora detêm o poder do exercício da Justiça, de factos, que ainda não transitaram em julgado, o que me parece, é que Mário Soares e José Sócrates querem baralhar a opinião pública, como se ela estivesse a ser lavrada por malfeitores.

Que Mário Soares atente nisto: com estas "jogadas" falsas anda a deitar abaixo o edifício da nossa democracia incipiente, onde falta, ainda, alicerçar melhor as fundações, as paredes e, sobretudo, o telhado, que com atitudes destas - e outras de que nem é bom falar -  sofreu uns rombos e começa a meter água.

Que a inundação não afogue, uma vez mais, o nosso povo.
É o meu desejo neste dia de fim de Ano Velho, na esperança que o Ano Novo assim o seja, não apenas no nome, mas no conteúdo. O mais importante. 
E que José Sócrates seja julgado como merecem sê-lo todos os homens!




terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Coisas da I República (7)



Os republicanos da I República, imerecidamente, 
esqueceram tão sugestivo postal proclamativo e ponho dúvidas 
se os da II e III República o respeitam como ele merece!


As gerações mais antigas - de que faço parte - na sua juventude ouviram falar dos desmandos dos políticos da I República, sobretudo, da falta de respeito e de amor de uma causa que havia acabado com a Monarquia e se implantou cantando hosanas a um tempo novo que, afinal, não souberam merecer.

O que é mais grave é que, ainda hoje, porque nos faltam as verdadeiras raízes da cidadania que deve nortear os homens, sejam quais sejam as suas cores políticas, por que a Pátria, na altura, não teve chão capaz para amadurecer o fruto que lhe plantado em 1910, assistimos a cenas picarescas que, nalguns casos fazem lembrar os velhos republicanos, que dois anos após a implantação do novo regime não eram capazes de se entender, pondo acima de tudo o bem de Portugal para o qual, diziam, terem feito a Revolução.

E, por certo, assim foi!

Eis a notícia coeva que nos dá a imagem de algo que não devia ter acontecido.



Noticia do Jornal republicano "O Zé" de 12 de Dezembro de 1912


Sermão de S. José pelo P. António Vieira (Transcrição "ipsis-verbis")


Sermão do Padre António Vieira proferido na Capela Real em 1642, no dia do nascimento do Rei D. João IV e da festividade de S. José, 19 de Março.


Para além dos motivos de ordem religiosa, este sermão de Vieira caracteriza-se pelo esforço de concordar o Evangelho e a festa de São José com a festa do novo rei, sentado no trono de Portugal à pouco mais de um ano. Notam-se bem as preocupações do célebre orador em mostrar a legitimidade da Casa de Bragança ao trono de Portugal e à sucessão de D. Sebastião, havendo já um esboço da futura ligação entre a legitimidade do governo de D. João IV, e as ideias do rei Encoberto e do Quinto Império, um tema a que voltará bastantes vezes, e que servirá para defender a legitimidade da aclamação do duque de Bragança..
É que a Restauração de uma dinastia nacional em Portugal estava longe de ser, naquele momento,  um dado adquirido, tanto a nível externo, como sobretudo a nível interno. As resistências à revolta contra um rei legítimo - Filipe III -, eram muitas e as reticências tanto na aristocracia, como na Igreja assim como na população em geral bastantes. Dificuldades no estabelecimento do novo estado de coisas que o nacionalismo português tem impedido de investigar convenientemente, mas que levarão o padre jesuíta a utilizar todos os meios para justificar a revolta, como seja em último caso a lendária afirmação proferida em Ourique a D. Afonso Henriques por Cristo: «Quero em vós, e em vossa descendência estabelecer o meu império».



«O TEMPO EM QUE SE COMEÇOU A CELEBRAR S. JOSÉ, FOI PONTUALMENTE DEPOIS DA PERDA DE EL-REI D. SEBASTIÃO, DE TRISTE MEMÓRIA, E ANTES DA FELICÍSSIMA RESTITUIÇÃO À COROA DE EL-REI D. JOÃO NOSSO SENHOR; PARA QUE POSTO ENTRE A RUÍNA DO REINO, E O REMÉDIO: COMPADECIDO DA RUÍNA, A REMEDIASSE».

SERMÃO DE S. JOSÉ

Cum esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph. 1 

[«Maria, Mãe de Jesus, estava prometida em casamento a José»]

I

Questão foi mui duvidada entre os Antigos, qual dia desta vida era mais feliz; se o primeiro, se o último; se o do nascimento, se o da morte. Daqui veio, que seguindo várias gentes várias opiniões, umas se alegravam nos nascimentos, outras os celebravam com lágrimas: umas se entristeciam nas mortes, outras as solenizavam com festas. Chegou finalmente a dúvida ao tribunal de el-rei Salomão, o qual inclinando-se à parte que parecia menos provável, resolveu que melhor é o dia da morte, que o dia do nascimento: Melior est dies mortis die nativitatis [«é melhor ir a uma casa onde há luto do que ir a uma casa onde se faz festa»]. 2 Com isto estar resoluto, e definido assim na Escritura, hoje parece que temos a mesma questão ou concordada, ou ressuscitada; porque estamos por mercê de Deus em um dia tão glorioso por uma morte, tão feliz por um nascimento, que bem se pode competir dentro em si mesmo, ou a vencer feliz suas glórias, ou a vencer glorioso suas felicidades. Consagrou-se este dia às glórias do Céu com a morte do maior santo que nele reina, o divino Esposo da Virgem Maria., S. José: e consagrou-se outra vez o mesmo dia às felicidades de Portugal, com o nascimento felicíssimo do mais desejado rei, e mais benemérito, el-rei nosso senhor D. João, o Quarto, para que sobre os trinta e oito, que hoje conta, continue por muitos e mui compridos anos as prosperidades que goza. Morre hoje José, e nasce Sua Majestade. Que ventura tão recíproca! Nem José, morrendo, podia deixar no mundo melhor substituto: nem Sua Majestade, nascendo, podia entrar no mundo com melhor planeta.

Estando Cristo Redentor nosso na cruz, olhou para S. João, o discípulo amado, e encarregou-lhe que tivesse cuidado de servir e acompanhar a sua Santíssima Mãe. Reparam alguns santos em não dar o Senhor este cargo a outro apóstolo, senão a S. João, porque ainda que em S. João concorriam todas as qualidades, em algumas era igualado, e em alguma excedido; e para mordomo da Rainha dos Anjos todos o excediam no atributo da ancianidade. Pois se era mais moço João, e havia outros amados, e mais parentes, porque não escolheu Cristo a outro discípulo, senão a S. João para este ofício? A razão foi; porque o ofício de acompanhar e servir à Senhora, era ofício de S. José, enquanto viveu: e para substituir em ausências de José, quem havia de ser, senão João? Não é menos que de S. Cipriano o pensamento: Ut non tam Joseph oneretur tanti ministerii praepositura, sed Joannes. Morrera José: vagara no mundo aquele grande lugar; e para substituir em sua morte, para suceder em sua ausência, ninguém havia no mundo que estivesse a caber, senão quem? João, o amado de Deus. João o amado de Deus substitui a José: Non tam Joseph, sed Joannes.

E isto quando? No dia de seu nascimento. Parece que não pode ser; porque nem o real, nem o nascimento podem competir a S. João aqui. Ora tudo foi. Quando Cristo deu a S. João o cuidado de servir à Senhora, as palavras que disse foram estas: Mulier, ecce Filius tuus: 3 Mulher, eis aí teu filho. Deinde dicit discipulo: Ecce Mater tua: 4 João, eis aí tua Mãe. Mãe e Filho, de que maneira? Mãe tinha S. João, mas era Maria Salomé: Filho era, mas do Zebedeu. Pois se estes eram seus pais, como se chama João filho da Senhora, e a Senhora Mãe de João? É porque João tornou a nascer nesta hora, e nasceu só da Virgem por força das palavras de Cristo. Autores houve, e entre eles expressamente S. Pedro Damião, que disseram, que assim como as palavras, Hoc est Corpus meum [«isto é o meu corpo»], ditas uma vez por Cristo, tiveram força para converter o pão em corpo do mesmo Cristo; assim as palavras, Mulier, ecce Filius tuus, tiveram força para fazer a S. João, e o converterem de filho do Zebedeu em filho de Maria.

De maneira, que S. João teve dois nascimentos: um nascimento natural, com que nasceu filho do Zebedeu; outro nascimento sobrenatural, com que nasceu filho da Mãe de Deus. Pelo primeiro nascimento nasceu nas praias do Tiberíade; pelo segundo nascimento nasceu ao pé da cruz. Pelo primeiro nascimento nasceu de geração humilde; pelo segundo nascimento nasceu da mais ilustre e real prosápia que havia no mundo, filho de uma Senhora., herdeira de um rei morto à mão de seus inimigos: Jesus Nazarenus Rex Judaeorum [Jesus de Nazaré rei dos Judeus]. Assim nasceu S. João segunda vez, e assim foi necessário que nascesse, para suceder no lugar de S. José como sucedeu; porque, só se pode substituir dignamente a morte de José, com quê? Com o nascimento real de um João, o amado de Deus: Discipulum, quem diligebat: Mulier ecce Filius teus: Non tam Joseph, sed Joannes.

II

Só vejo me podem reparar os curiosos em falar no dia de S. José por termos de morte, sendo que mais devia com um, e outro intento chamar-lhe, nascimento; porque assim chama a Igreja às mortes dos santos: Natalitia Sanctorum. Se eu não fora mais amigo da verdade, que da propriedade, assim o fizera; mas as mortes de outros santos podem-se chamar nascimentos; a morte de S. José, não. As mortes de outros santos podem-se chamar nascimentos, porque quando morreram à vida temporal, nasceram à vida eterna. Não assim S. José. Como não estava ainda aberta a porta do Céu, quando S. José morreu, não foi o Santo no dia de sua morte à glória, senão ao Limbo. Ao Limbo S. José neste dia? Valha-me Deus; que duvidoso horóscopo! Não sei eu como poderei provar o que entrei dizendo que não se podia nascer com melhor planeta. Dizem os matemáticos, que nascer com os planetas debaixo da Terra, é prognóstico de infelicidades. Pois se S. José neste dia seu o temos todo debaixo da terra, o corpo na sepultura, a alma no Limbo; que influências podemos esperar deste planeta em tão funesto sítio? Ora digo que é felicíssimo auspício ter neste nascimento a S. José debaixo da terra; porque ainda que os planetas debaixo da Terra tenham perigosas influências, tiram-se por excepção os planetas que são Josés: os planetas que são Josés, para influírem felizmente, hão-de estar debaixo da Terra.

Estava o patriarca José em Egipto: morreu, e diz o Texto sagrado, que depois de sua morte, cresceram muito os Israelitas em número. e poder: Quo mortuo, creverunt filii Israel quasi germinantes multiplicati shunt, ac roborati nimis, impleverunt terram [«morreu ... os filhos de Israel tornaram-se fecundos e multiplicavam-se; tornaram-se cada vez mais numerosos e poderosos, a tal ponto que o país ficou repleto deles»]. 5 Que os filhos de Israel crescessem pelos merecimentos de José, não me admira; antes assim havia de ser, que isso quer dizer José, aumento e crescimento: Joseph accrescens. O que me admira é que crescessem os Israelitas depois dele morto: Quo mortuo. Se José quer dizer crescimento, e os filhos de Israel cresceram por sua. influência, porque não cresceram em sua vida, senão depois de sua morte? A razão é porque para se lograrem as influências de José, há-de estar debaixo da terra. Delicadamente o tirou Hugo Cardeal do mesmo Texto. Diz o Texto que: Creverunt quasi germinantes, cresceram os filhos de Israel, assim como crescem as plantas. Bem dito, diz Hugo: Uno grano emortuo, multa creverunt: Cresceram os filhos de Israel como as planta; porque assim como as plantas, para nascerem, e crescerem, é necessário que a virtude de que nascem, se enterre primeiro debaixo da terra; assim para que a virtude de José influísse aumentos nos filhos de Israel, foi necessário que ele morresse e se enterrasse primeiro: Quo mortuo, creverunt. Os outros planetas hão-de estar em cima, mas os Josés debaixo da terra.

Grande advertência de Filo. Pode-se duvidar a razão porque José se mostrou tão benigno, e fez tantos favores e mercês a seus irmãos, de quem recebera tantos agravos. Digo que se pode duvidar; porque bem mostraram os primeiros dois irmãos, Caim e Abel, que não basta a razão de irmandade para abrandar corações. E se um irmão respeitado mata; um irmão ofendido, que fará? Pois se José estava tão ofendido de seus irmãos, como se mostrou tão benigno e liberal com eles? A razão, disse Filo, que foi por umas palavras que disseram a José os irmãos. (quando lhe deram conta de si, disseram que eram doze; os dez que ali estavam, um que ficara com o pai, e outro que morrera, que era o mesmo José. As palavras foram estas: Duodecim fratres sumus: minimus cum patre nostro est, alius non est super [«Éramos doze irmãos ... : o mais novo está agora com o nosso pai e o outro desapareceu»]. 6 O menor de todos, Benjamim, ficou com o pai; o outro, que era José, Non est super, já não está em cima, está debaixo da terra. Já está debaixo da terra José? Por isso se mostrou tão benigno, e liberal com os irmãos, diz Filo: Alius non est super, de se loquentes audiens, quid animi habere potuit? Ouvindo dizer José que já não estava em cima, senão que estava debaixo da terra, que outra coisa pode fazer senão amar, favorecer, e influir beneficamente liberalidades? Os outros planetas, para influírem benignamente, hão-de estar em cima; mas José, quando não está em, cima, senão debaixo da terra, como hoje (assim tem o hebreu: Hodie non est super) no dia em que não está em cima, senão debaixo da terra, então influi vida, mercês, felicidades, e aumentos.

III

Temos visto o nascimento real de João o Amado, e o sítio do Planeta, em que nasce debaixo da terra, no mesmo, ou semelhante dia; e porque os dias, como diz David, também se falam e se entendem uns com os outros: Dies diei eructat verbum [«o dia passa a mensagem a outro dia»]; 7 com razão perguntará o dia do nascimento de Sua Majestade ao dia, em que nasce, de S. José, que influências pode ou deve esperar de tão divino Planeta. g resposta não é como a dos matemáticos, duvidosa e incerta; mas tão certa e sem dúvida, como tudo o que dizem os evangelistas. Vamos ao nosso Evangelho, que é de S. Mateus, no capítulo primeiro, e ouçamos com admirável propriedade o que diz, como se falara deste dia, e do nosso caso: Cum esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph. Estava, diz, a Mãe de Jesus, Maria, desposada com José. Onde se deve advertir, que a palavra desposada não significa promessa recíproca de bodas futuras, senão verdadeiro e actual matrimónio por contrato, e palavras de presente, como consta do mesmo Texto: Noli timere accipere Mariam conjugem tuam: [«não tenhas medo de receber Maria como esposa»]  8    mas a cortesia do Evangelista não disse, casada, senão desposada, como termo mais decente e decoroso. O que suposto, era a Senhora já Mãe de Jesus, porque tinha concebido ao Verbo Eterno; mas antes de Mãe, primeiro desposada. E porquê? Como era, e havia de ser sempre Virgem, tanto importava ser primeiro desposada, como depois: porque razão logo ordenou a Providência Divina, que não concebesse ao Filho de Deus, senão depois de desposada: Cum esset desponsata Mater Jesu? A razão principal é; porque convinha e era necessário, que a conceição, e parto da mesma Virgem estivesse encoberto: Ut virginues partus celaretur. Assim o dizem S. Jerónimo, S. Basílio, S. João Damasceno, Santo Ambrósio, S. Bernardo, e é comum dos santos padres. Constava da Sagrada Escritura pelo oráculo e testemunho do profeta Isaías, que o Messias, e Rei prometido para Redentor do mundo havia de nascer de uma Virgem: Ecce, Virgo concipiet et pariet Filium [«a jovem concebeu e dará à luz um filho»]. 9 E porque este Rei não só na Terra, senão no mesmo Inferno, havia de ter muitos émulos e inimigos, esta era a importância, e necessidade porque convinha, e tinha ordenado a Divina Providência, que estivesse encoberto a todos, como com efeito se encobriu no desposório, ou matrimónio da Virgem Santíssima com S. José, parecendo que não tinha mais mistério a conceição, e nascimento daquele Filho, que o comum e ordinário dos outros homens.

Que semelhança tem agora, ou que propriedade em S. José a providência de Deus neste mistério com o nascimento de Sua Majestade, que Deus guarde, no dia do mesmo Santo? Disse-o Ruperto com umas palavras, que se lhe pedíramos as fizesse de encomenda, não vieram mais nascidas ao intento: Ut esse Sponsus, custosque Beatae Virginis, ac nati ex ea Regis. Desposa-se José com Maria, e nomeadamente com Maria Mãe de Jesus, porque o fim destes desposórios foi ser José Esposo da Virgem, e guarda do Rei nascido: Custos nati Regis. Oh grande excelência! Oh grande glória! Oh dignidade superior a todos os santos a de José! Que os foros da mesma omnipotência nasçam debaixo de seu amparo, e que não tendo Cristo Anjo da Guarda, porque é Deus, tenha por Custódio um homem, que é S. José: Custus nati Regis! Grande glória de José, e grande graça também do. nosso rei, e reino! Que o amasse Deus, e cuidasse do seu remédio com tão especial providência, que o patrocínio que deu em seu nascimento ao Rei que havia de restaurar o mundo, esse mesmo patrocínio desse em seu nascimento ao rei que havia de restaurar a Portugal! Um e outro nasceu debaixo da mesma protecção, um e outro nasceu debaixo da tutela e amparo de S. José: Joseph custos nati Regis.

Sendo pois estes dois reis nascidos ambos reis, ambos redentores, e ambos encobertos; o primeiro, como diz a profecia de Isaías: Vere tu es Deus absconditus, Deus Israel Salvator [«De facto, Tu és o Deus escondido, o Deus de Israel, o Salvador»]. 10 O segundo prometido pela profecia, e tradição de Santo Isidoro a Espanha, não com outro nome, ou antonomásia, senão a do Encoberto; vejamos quão particularmente encobriu a um e outro, o que a um e outro deu Deus por guarda o cuidado e vigilância de S. José. A Cristo encobriu-o, como Esposo de Maria, nove meses e treze dias desde sua conceição até depois de seu nascimento, em que o descobriu a estrela no Oriente aos Magos, e os Magos em seguimento dela a toda Judeia. E como o encobriu? Spiritus Sanctus superveniet in te, et virtus Altissimi obumbravit tibi [«O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com a Sua sombra»]. 11  A Virgem Senhora nossa tinha dois Esposos, um divino, outro humano. O Esposo divino era o Espírito Santo; o humano, S. José. Do primeiro Esposo era obra o Filho concebido, como disse o Anjo à mesma Virgem: Spiritus Sanctus superveniet in te: acrescentando: Et virtus Altissimi obumbravit tibi: que a virtude do Altíssimo lhe faria sombra. E que sombra foi esta, ou quem foi este sombra °? Foi sem dúvida o segundo Esposo, a cuja sombra esteve a Virgem depois de desposada, e com a sombra. e nome de Pai, encobriu o que verdadeiramente não era seu Filho. Assim ficou o Rei, e Redentor, que havia de ser do mundo, encoberto desde sua Encarnação nove meses até seu Nascimento, e treze dias, até que a estrela e os Magos, e Deus por eles o descobriu ao mundo: Ubi est, qui natus est Rex Judaeorum? [«Onde está o Rei dos Judeus recém-nascido?»] 12 

Mas se S. José guardou encoberto a Cristo nove meses e treze dias; que comparação tem este tempo, que não chega a um ano, com mais de trinta e seis anos inteiros em que teve encoberto ao rei encoberto de Portugal, desde o dia de seu nascimento até o felicíssimo de sua restituição? Vejo que me respondem, que S. José não só encobriu a Cristo naquele primeiro ano não acabado, mas em outros, cujo número certo se não sabe. Sabendo pelo Anjo que Herodes entre os Inocentes de Belém, queria tirar a vida a Cristo, fugiu de Judeia para o Egipto, e depois da morte do mesmo Herodes, sabendo também por aviso do Céu, que reinava em Judeia Arque seu filho, retirou-se para Galileia. De sorte que para encobrir o primeiro Rei nascido, tomou por meio tirá-lo diante dos olhos dois reis seus inimigos, e escondê-lo em terras estranhas. Porém para encobrir o segundo rei, não só no seu nascimento, nem na sua infância, puerícia, ou adolescência, senão na idade de varão perfeito em tantos anos, a traça com que o encobriu a outros dois reis, que não menos lhe podiam tirar a vida e a coroa, qual seria? Verdadeiramente milagrosa, e digna da Omnipotência Divina. Dentro na mesma Espanha, dentro no mesmo Portugal, e diante dos olhos dos mesmos reis, escondeu e encobriu de maneira ao encoberto, que vendo-o, o não viam, nem viram. É, certo que assim foi, mas duvidoso, como podia ser.

No dia da Ressurreição ajuntou-se Cristo aos dois discípulos que iam para Emaús, os quais, em todo aquele caminho, O viam e ouviam, sem O conhecerem. Porventura transfigurou-se Cristo, ou mudou as feições do rosto? Por nenhum modo. Pois se eram seus discípulos, costumados a vê-l'O todos os dias, e agora O estavam vendo, e no seu rosto não havia mudança, como O não conheciam? Responde o Evangelista: Oculi eorum tenebantur, ne eum agnoscerent [«Os discípulos, porém, estavam como cegos e não O reconheceram»]. 13  A palavra tenebantur, melhor se pode entender, do que declarar na nossa língua: Tenebantur, estavam detidos: Tenebantur, estavam presos: Tenebantur, estavam suspensos: Tenebantur, estavam em si, e fora de si, como extáticos os olhos que O viam, e não conheciam. Fazendo este milagre nos Discípulos a omnipotência de Cristo; e nos reis, que tanto podiam temer, e acautelar-se do que hoje é nosso, a mão invisível de S. José. Desde o princípio em que se fizeram senhores de Portugal aqueles reis estranhos; Filipe II tinha diante dos olhos a senhora D. Catarina; Filipe III ao duque D. Teodósio; Filipe IV a Sua Majestade, que finalmente lhe tirou da cabeça a coroa; e vendo-os, não conheciam o que neles deviam recear e temer, cegando-os S. José com a mesma luz de seus olhos; e cobrindo o seu e o nosso encoberto com o descobrir.

Assim desempenhou o grande santo a obrigação que tinha de encobrir, e provar o nome de encoberto no novo rei, nascido no seu dia: mas ainda lhe falta, ou nos falta uma maior consideração e vigilância deste seu empenho. O ódio, a emulação, a cautela, o receio de perder o ganhado em Portugal, que tinham os reis estranhos, a grandeza do poder, e a doçura do possuir, podia lisonjear e adormecer todo este cuidado; mas da nossa parte, e em nós os Portugueses, além da dor do perdido, estava com os olhos abertos ao remédio o amor, o desejo, e a necessidade. O amor ainda que é cego para ver, é lince para adivinhar: o desejo é um afecto sempre ardente e inquieto, que não sabe sossegar um momento: sobretudo a necessidade da redenção, da liberdade, e de rei natural, era a que mais apertava os cordéis a este tormento, e tinha. com a soga na garganta todos estes afectos. E como podia ser, que sendo eles tão vigilantes, e tendo sempre o direito da coroa, e a pessoa do rei a quem pertencia, diante dos olhos, de tal sorte a encobrisse S. José, que a ninguém viesse ao pensamento ser ele o que o havia de recuperar"? Mas em encobrir o nosso encoberto neste grande perigo de o declararem as evidências, ou conjecturas de algum destes afectos, mostrou o Santo, quão alta e delicadamente observou as obrigações do ofício de o guardar: Custos nati Regis; equivocando milagrosamente um rei com outro rei, e encobrindo um vivo com outro morto. Perdeu-se, ou morreu na batalha de África el-rei D. Sebastião, e puderam tanto as saudades de um rei, que se tinha perdido a si e a nós, que sem se divertirem aonde deviam, deram em esperar dele, e por sua vida e vinda, a nossa redenção; e este foi o altíssimo conselho, com que S. José, debaixo das cinzas do rei passado e morto, conservou e teve encoberto o rei futuro e vivo. Não vemos conservar-se vivo o fogo debaixo das cinzas que o encobrem? Pois assim conservou e encobriu S. José a vida de el-rei, que Deus guarde, debaixo das cinzas de el-rei D. Sebastião defunto. É o que diz expressamente Isaías, no capítulo LXI. Promete Deus ali de alegrar os tristes, de consolar os desconsolados, de libertar os cativos, e conclui, que pelas cinzas lhes dará a coroa: Ut mederer contritis corde: et praedicarem captivis indulgentiam: ut consolarer omnes lugentes ; 14 e finalmente: Et darem eis coronam pro cinere. Assim estava Portugal triste, assim estava desconsolado, assim estava cativo, e assim lhe prometia S. José a coroa perdida debaixo das cinzas do rei morto reputado por vivo; e assim conservava vivo e encoberto aquele que verdadeiramente havia de restituir aos tristes, desconsolados e cativos a coroa perdida. De maneira que encoberta a verdade debaixo do engano, a esperança, debaixo da desesperação, a vida debaixo da morte, e a coroa debaixo das cinzas, aos príncipes estranhos, que tudo isto tinham por riso, não lhes dava cuidado o remédio; e os vassalos, amigos e naturais, que o tinham, pouco menos, quase por fé, com milagrosa providência, enganada a sua dor, o seu amor, o seu desejo, e a sua necessidade, se consolavam e animavam da falsa e equivocada esperança até que a verdadeira, debaixo dela encoberta, ao tempo destinado pelo Céu, lhe trouxe a felicidade que hoje logramos.

IV

Certo que ponderar cabalmente esta felicidade, será causa de não faltar nunca Portugal ao eterno agradecimento a S. José. Que uma vida (não sejamos ingratos, por não saber o que devemos a Deus), que uma vida, em que estavam fundadas as consequências, que hoje se logram, apesar da emulação de dois reis, debaixo de sua mesma jurisdição se conservasse! Que nasça a décima sexta geração de Portugal tão esperada., e que sendo décima sexta por três dias, nem o amor dos naturais, nem os ciúmes dos estranhos em trinta e sete anos o descobrisse! Vivo apesar de tantas advertências políticas, encoberto, apesar de tantas evidências manifestas! Grandes milagres da Providência Divina; e este segundo, a meu ver, ainda maior. E se não, pergunto: Qual foi a razão, porque ordenou Deus que o libertador que havia de ser de Portugal, se conhecesse tantos anos antes no mundo, não pelo nome de libertador, senão pelo nome de encoberto? A razão foi; porque maior milagre da Providência era conservá-lo encoberto, que fazê-lo libertador. Fazê-lo libertador, foi deliberarem-se os homens a uma coisa muito útil; conservá-lo encoberto, foi cegarem-se os homens a uma coisa muito manifesta: e maior milagre é encobrir evidências ao entendimento, que persuadir conveniências à vontade. O que todos ponderam, o que todos admiram, o de que todos fazem maior caso é, que se unissem, e concordassem as vontades de todo um reino, para fazer o que fizeram. Muito foi; mas bem considerado, não foi muito; porque, que muito que as vontades dos homens se persuadissem a uma coisa tão útil, e tão honrosa, como ter reino, ter rei, ter liberdade, viver sem cativeiro e sem opressão? Porém que o autor felicíssimo de todo este bem nascesse e vivesse entre nós tão retratado pelos oráculos divinos, e ainda. nomeado pelo próprio nome, e o tivesse Deus encoberto, sem que o amor, nem a emulação, que são os dois afectos mais linces, o descobrissem! Que o vissem os olhos, e que guardasse segredo o entendimento! Que suspirassem os desejos, e que não bastassem as maiores advertências! Dissimulado a evidências, e encoberto a olhos vistos! Este é o maior milagre, esta a maior maravilha, mas agora exercitada, e muitos séculos antes já ensaiada: por quem? Pelo autor da mesma protecção, S. José.

Conta o Texto sagrado no quarto Livro dos Reis, capítulo onze, que em uma ocasião quiseram tirar a vida tiranicamente os herdeiros do sangue real de Israel ao menino Joás; porém que Josabá o livrou do perigo, e o criou escondidamente: Abscondit eum, ut non interficeretur, 15 até que passados alguns anos, os nobres do povo se uniram, e todos com as armas nas mãos entraram no paço real, e impedindo as guardas em um sábado, aclamaram por rei a Joás, e o meteram de posse do reino, que lhe pertencia, lançando do paço a Atalia, uma senhora que então governava. Desta maneira refere o Texto este caso, e bem se vê, que é tão próprio do que sucedeu em Portugal, que se ao nome de Joás se mudara o s, em m, se pudera trasladar este capítulo, e escrever-se em nossas crónicas. Bem está: mas quem fez isto? A quem se deve esta façanha! Quem há-de levar a glória desta maravilha? Quem? S. José. Diz Isidoro Isolano que Josabá, a cuja indústria deve sua vida e restituição Joás, foi figura de S. José, Esposo da Virgem Joseph profecto in Josaba praefiguratus est, quae Joas Infantem clam nutrivit, et aluit, ao regem Israel tandem constituit. Hei-de construir as palavras ao pé da letra, para maior glória de S. José, e maior evidência do nosso caso. Joseph profecto in Josaba praefiguratas est. Verdadeiramente S. José foi figurado em Josabá: Quae Joas infantem clam nutrivit, et aluit: que guardou ao infante Joás vivo e encoberto: Ac regem Israel tandem constituit: e finalmente o fez rei de Israel, metendo-o de posse do reino, que lhe tocava. E não é isto mesmo, o que fez S. José com o rei e reino de Portugal? Nem o caso pode ser mais próprio; nem eu quero dizer mais nesta matéria.

Estas são as obrigações em que S. José tem empenhado a Vossa Majestade, Senhor; e as consequências delas são, que assim como S. José não só foi Salvador do Salvador, senão também do mundo; assim não foi só Salvador do nosso Libertador, senão também do Reino libertado. Espero em Deus que o hei-de provar literalmente. Benedictio illius, qui apparuit in rubo, veniat super caput Joseph [«que o favor d'Aquele que habita na sarça desça sobre a cabeça de José»]. 16 A bênção daquele, que apareceu na sarça, desça sobre José. Esta bênção foi lançada ao patriarca José, e diz o Pelusiota e outros, que se cumpriu em S. José, Esposo da Virgem. E qual foi a bênção daquele, que apareceu na, sarça a Moisés? Ele mesmo o disse: Vidi afflictionem populi mei, et descendi ut liberem eum: [«eu vi muito bem a miséria do meu povo e desci para o libertar» 17 Vi a aflição do meu povo debaixo do poder de um rei estranho, e desci do Céu a libertá-lo. Pois se a bênção do que apareceu a Moisés na sarça, é ser libertador do povo oprimido do poder de um rei estranho, e esta bênção se cumpriu em José, Esposo da Virgem; digam-me agora, os historiadores, quando se cumpriu esta bênção, senão na restauração de Portugal. Viu o Santo as aflições deste povo verdadeiramente seu; e desceu do Céu a libertá-lo, guardando com particular providência a vida do nosso felicíssimo libertador, como fez à de Cristo, segundo a protecção que tomou em um e outro nascimento: Custos nati Regis, que foi o fim com que se desposou com a Virgem: Cum esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph.

V

Tenho acabado o sermão; de todo ele quisera tirar somente uma coisa, queira o Senhor que seja tão bem recebida nos ânimos de todos, como é a todos necessária e importantíssima. O que concluo de todo este discurso é, que deve o reino de Portugal tomar solenemente a S. José por particular advogado, e protector de sua conservação e aumentos. A razão que tenho para isto, é a mais eficaz, que pode ser: querer Deus que seja assim, nem nós devemos querer outra coisa. Sonhou el-rei Faraó que haviam de vir a seu reino aqueles catorze anos de vária fortuna, e dizendo-lhe que importava prevenir-se de algum varão de grande prudência, que superintendesse. à conservação e remédio do reino, Placuit Pharaoni consilium [o concelho agradou ao Faraó»], 18 contentou o conselho ao rei, e voltando-se para José, disse: Nunquid sapientiorem, et consimilem tui invenire potero [«não há ninguém tão inteligente e sábio como tu»]? 19 Porventura, José, posso eu achar algum que seja mais sábio, mais prudente, e em cujas mãos e conselho esteja mais segura minha monarquia,? O ceptro e a coroa ponho debaixo do vosso patrocínio, mandai, ordenai, despendei, não como vassalo, mas como pai. O mesmo digo no nosso caso.

Isidoro de Isolano já acima alegado, autor, que há muitos anos que escreveu, admirando-se muito de que em seu tempo não fosse celebrado na Igreja o glorioso S. José, conclui assim: Suscitabit Dominus sanctum Joseph ad honorem nominis sui, caput, et patronum peculiarem imperii militantis Ecclesiae. Esteja embora esquecido por agora S. José, e não seja sua memória tão celebrada como merece; que Deus levantará este grande santo a seu tempo, para que seja particular padroeiro do seu império na Igreja militante: Patronum peculiarem imperii militantis Ecclesiae. Duas coisas havemos de saber para entendimento destas palavras: uma, quando se começou a celebrar S. José; outra, qual é no mundo o império de Cristo. O tempo em que se começou a celebrar S. José, foi pontualmente depois da perda de el-rei D. Sebastião, de triste memória, e antes da felicíssima restituição à coroa de el-rei D. João nosso senhor; para que posto entre a ruína do Reino, e o remédio: compadecido da ruína, a remediasse. E o império de Cristo qual é? O mesmo Senhor foi servido de no-lo explicar, quando disse a nosso fundador, o senhor rei D. Afonso Henriques: Volo in te, et in semine tuo imperium mihi stabilire. Quero em vós, e em vossa descendência estabelecer o meu império. Pois se Deus levanta no mundo a S. José, quando quer levantar a Sua Majestade por rei: se o império de Cristo na Igreja militante somos nós; e S. José há-de ser particular padroeiro deste império: que resta, senão que efectivamente se conclua de nossa parte, que é o constituir e reconhecer com pública solenidade a S. José por protector particular do reino de Portugal, e sua conservação; dizendo a este José, o que os Egípcios disseram ao outro: Salus nostra in manu tua est, respiciat nos tantum Dominus noster, et laeti serviemus regi [«Tu salvaste-nos a vida! Alcançámos o teu favor e tornar-nos-emos escravos do Faraó»?  20

Notas: 

Optei por apresentar a tradução das citações latinas retiradas da Bíblia no próprio corpo do texto para permitir uma leitura contínua do sermão.

1. Mateus, I, 18. (regresso ao texto)
2. Eclesiastes, VII, 2. (regresso ao texto)
3. João, XIX, 26. (regresso ao texto)
4. Ibid., 27. (regresso ao texto)
5. Êxodo., I, 6 e 7. (regresso ao texto)
6. Génesis, XLII, 13. (regresso ao texto)
7. Salmos, XVIII, 3. (regresso ao texto)
8. Mateus, I, 20. (regresso ao texto)
9. Isaías, VII, 14. (regresso ao texto)
10. Isaías, XLV, 15. (regresso ao texto)
11. Lucas, I, 35 (e não 38). (regresso ao texto)
12. Mateus, II, 2. (regresso ao texto)
13. Lucas, XXIV, 16. (regresso ao texto)
14. Isaías, LXI, 1, 2 e 3. (regresso ao texto)
15. 1.º Livro dos Reis, XI, 2. (regresso ao texto)
16. Deuteronómio, XXXIII, 16. (regresso ao texto)
17. Êxodo, III, 7 e 8. (regresso ao texto)
18. Génesis, XLI, 36. [de facto o versículo 37] (regresso ao texto)
19. Ibid., 39. (regresso ao texto)

20. Génesis, XLVII, 25. (regresso ao texto)
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in, Portal da História




Um postal do tempo em que Portugal honrava a História Pátria



 Postal comemorativo do 4º centenário 
da Descoberta do Caminho Marítimo para a India (1498-1898)
in, "Restos de Colecção"


No passado ano 1998 perfizeram-se cinco séculos da descoberta do Caminho Marítimo para a India, mas como somos, agora, um País de distraídos, ao contrário do que aconteceu um século antes e de que o postal que reproduzimos dá conta, o evento passou como se nada de importante os nossos avoengos marinheiros embarcados na frota de Vasco da Gama tivessem realizado.

Perdemos a memória ou, parece, que temos vergonha do que fizemos.

Este não é caso único. Para os vários responsáveis pela Cultura portuguesa ao nível governativo após a Revolução de 25 de Abril, parece que só esta data conta, enquanto as outras são postergadas o que tem sido lamentável, por se não cuidar que um País sem memória apressa-se a morrer, pelo que, pelo menos, se impõe que o feriado do dia 1º de Dezembro seja reposto quanto antes.

Voltando, ao que vínhamos expendendo, mantém-se de pé a crítica de não ter sido convenientemente lembrado o quinto centenário do feito de Vasco da Gama, pese embora, ter sido dos mais importantes da nossa História marítima, que Luís de Camões imortalizou no poema épico - Os Lusíadas - publicado em 1572, cumprindo o sonho que todo o poeta de alta craveira do século XVI acalentava, como acontecia connosco, pelo que Luís de Camões se lançou na escrita de uma epopeia que nos faltava: os Descobrimentos.

Aquele feito imortal de Vasco da Gama aguçou-lhe a inspiração, tendo feito dele o acontecimento central da sua obra, que tem no Canto Sétimo o seu auge narrativo, a começar pela chegada, pela descrição da India do mouro Monçaide e do recebimento dos portugueses pelo Catual e o Samorim.




O desembarque

1 - ( Chegada da frota à Índia )

        Já se viam chegados junto à terra,
        Que desejada já de tantos fora,
        Que entre as correntes Indicas se encerra,
        E o Ganges, que no céu terreno mora.
        Ora, sus, gente forte, que na guerra
        Quereis levar a palma vencedora,
        Já sois chegados, já tendes diante
        A terra de riquezas abundante.
 
2 - ( Elogio a Portugal )

        A vós, ó geração de Luso, digo,
        Que tão pequena parte sois no inundo;
        Não digo ainda no mundo, mas no amigo
        Curral de quem governa o céu rotundo;
        Vós, a quem não somente algum perigo
        Estorva conquistar o povo imundo,
        Mas nem cobiça, ou pouca obediência
        Da Madre, que nos céus está em essência;
 
3
        Vós, Portugueses, poucos quanto fortes,
        Que o fraco poder vosso não pesais;
        Vós, que à custa de vossas várias mortes
        A lei da vida eterna dilatais:
        Assim do céu deitadas são as sortes,
        Que vós, por muito poucos que sejais,
        Muito façais na santa Cristandade:
        Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!

                                 (...)

30 - ( Fala de Monçaide )

        Ele começa: "Ó gente, que a natura
        Vizinha fez de meu paterno ninho,
        Que destino tão grande ou que ventura
        Vos trouxe a cometerdes tal caminho?
        Não é sem causa, não, oculta e escura,
        Vir do longínquo Tejo e ignoto Minho,
        Por mares nunca doutro lenho arados,
        A Reinos tão remotos e apartados.

31 - ( Descrição da Índia )

        "Deus por certo vos traz, porque pretende
        Algum serviço seu por vós obrado;
        Por isso só vos guia, e vos defende
        Dos inimigos, do mar, do vento irado.
        Sabei que estais na Índia, onde se estende
        Diverso povo, rico e prosperado
        De ouro luzente e fina pedraria,
        Cheiro suave, ardente especiaria.

32 - ( Malabar. Saramá Perimal. )

        "Esta província, cujo porto agora
        Tomado tendes, Malabar se chama:
        Do culto antigo os ídolos adora,
        Que cá por estas partes se derrama:
        De diversos Reis é, mas dum só
        Noutro tempo, segundo a antiga fama;
        Saramá Perimal foi derradeiro
        Rei, que este Reino teve unido e inteiro. 

(...)     
 
44
        Na praia um regedor do Reino estava,
        Que na sua língua Catual se chama,
        Rodeado de Naires, que esperava
        Com desusada festa o nobre Gama.
        Já na terra, nos braços o levava,
        E num portátil leito uma rica cama
        Lhe oferece, em que vá, costume usado,
        Que nos ombros dos homens é levado.

45
        Desta arte o Malabar, destarte o Luso
        Caminham, lá para onde o Rei o espera:
        Os outros Portugueses vão ao uso
        Que infantaria segue, esquadra fera.
        O povo que concorre vai confuso
        De ver a gente estranha, e bem quisera
        Perguntar: mas no tempo já passado
        Na torre de Babel lhe foi vedado. 
 
46 - ( Templo indiano )

        O Gama e o Catual iam falando 
        Nas coisas, que lhe o tempo oferecia; 
        Monçaide entre eles vai interpretando 
        As palavras que de ambos entendia.  
        Assim pela cidade caminhando,
        Onde uma rica fábrica se erguia
        De um sumptuoso templo, já chegavam, 
        Pelas portas do qual juntos entravam.

47
        Ali estão das deidades as figuras
        Esculpidas em pau e em pedra fria;
        Vários de gestos, vários de pinturas,
        A segundo o Demônio lhe fingia:
        Vêem-se as abomináveis esculturas,
        Qual a Quimera em membros se varia:
        Os Cristãos olhos, a ver Deus usados
        Em forma humana, estão maravilhados

(...)
 
51 - ( No palácio do Samorim )

        Pelos portais da cerca a sutileza
        Se enxerga da Dedálea facultade,
        Em figuras mostrando, por nobreza,
        Da Índia a mais remota antigüidade.
        Afiguradas vão com tal viveza
        As histórias daquela antiga idade,
        Que quem delas tiver notícia inteira,
        Pela sombra conhece a verdadeira.

52 - Baco

        Estava um grande exército que pisa
        A terra Oriental, que o Idaspe lava;
        Rege-o um capitão de fronte lisa,
        Que com frondentes tirsos pelejava;
        Por ele edificada estiva Nisa
        Nas ribeiras do rio, que manava,
        Tão próprio, que se ali estiver Semele,
        Dirá, por certo, que é seu filho aquele.

53 - ( Semíramis )

        Mais avante bebendo seca o rio
        Mui grande multidão da Assíria gente,
        Sujeita a feminino senhorio
        De uma tão bela como incontinente.
        Ali tem junto ao lado nunca frio,
        Esculpido o feroz ginete ardente,
        Com quem teria o filho competência:
        Amor nefando, bruta incontinência!

54 - ( Alexandre )

        Daqui mais apartadas tremulavam
        As bandeiras de Grécia gloriosas,
        Terceira Monarquia, e sojugavam
        Até as águas Gangéticas undosas.
        Dum capitão mancebo se guiavam,
        De palmas rodeado valerosas,
        Que já, não de Filipo, mas sem falta
        De progênie de Júpiter se exalta.

55 - ( Fala do Catual. Profecia 
                      da vinda dos portugueses à Índia )
 
        Os Portugueses vendo estas memórias,
        Dizia o Catual ao Capitão:
        "Tempo cedo virá que outras vitórias
        Estas, que agora olhais, abaterão;
        Aqui se escreverão novas histórias
        Por gentes estrangeiras que virão;
        Que os nossos sábios magos o alcançaram
        Quando o tempo futuro especularam.