Não obstante, cedeu e Martinho Lutero sedento de saber deu aso a que este desiderato que lhe atraía a alma levou-o a desejar alcançar o que para ele era prático e não o que era vistoso socialmente, mas superficial, tendência acentuada aos 18 anos com a sua entrada para a Universidade da cidade de Erfurt que havia de mudar a sua vida, revelando um acentuado amor ao estudo, onde sob ressaiu em relação aos companheiros, tendo com a sua disciplina intelectual amadurecido o entendimento em que a agudeza do espírito o preparou para os embates da vida, aguçando nele o amor a Deus que lhe enchia o coração, sentindo-se dependente do auxílio divino.
Foi a descoberta na Biblioteca da Universidade de uma Bíblia Latina - tradução de S. Jerónimo - que ele desconhecia e onde ele descobriu por inteiro a Palavra de Deus, que passou a desfolhar com reverência e admiração, julgando-se que foi a partir desta descoberta que se deu a sua entrada na vida monástica.
Ordenado sacerdote foi chamado do claustro para leccionar na Universidade de Wittenber, onde se aplicou ao estudo das Escrituras na línguas originais de onde resultaram as suas primeiras conferências sobre a Bíblia, com ênfase para os Salmos, os Evangelhos e as Epístolas, acções que lhe deram a notoriedade das pessoas que se deleitavam com a sua pregação.
Era então, um filho da Igreja papal e foi nessa qualidade que visitou Roma numa viagem a pé, hospedando-se nos mosteiros do caminho até vir a encontrar na cidade em que pontificava Leão X, desregramentos clericais que ele catalogou de pouca santidade, a ponto de ter emitido esta opinião: Ninguém pode imaginar que pecados e infames acções se cometem em Roma.
Tinham-se-lhe aberto os olhos e ao que parece nunca mais se fecharam aos enganos que observou e ao retirar-se de Roma, retirou daquela cidade o coração, começando aí o seu afastamento, ao tomar conhecimento do que se passava na Igreja com as indulgências cujo destino material era consumido - na parte que respeitava - às obras da construção da Basílica de S. Pedro, obra iniciada em 1506.
Regressado à sua Universidade onde obteve o grau de doutor em Teologia, distinção que lhe deu, como nunca, mais tempo para se dedicar ao estudo aprofundado das Escrituras Sacras que tanto o fascinavam, exaltando nele o dever de pastor para alimentar o rebanho de Deus, ansioso de que tudo quanto recebia de ensinamento se fundasse nos sagrados Livros e não outras doutrinas que não se baseassem neles.
Marinho Lutero havia interiorizado que a Igreja mercadejava com a graça de Deus, tendo as mesas dos cambistas sido colocadas ao lado dos altares dos seus Santos, com a alegação da angariação de fundos para a obra da Basílica de S. Pedro, em Roma, vendendo-se publicamente as indulgências com a autorização do Papa, ou seja com o dinheiro da extorsão estava-se a erguer um Tempo para o culto de Deus, tendo como seu principal dinamizador Tetzel que dirigia a venda das indulgências e cujo tráfico dentro das próprias Igrejas lhe causaram a maior das repulsas.
Foi daqui que nasceram em 1517 a publicação das suas 95 teses, que dizem assim:
Por amor à verdade e no empenho
de elucidá-la, discutir-se-á o seguinte em Wittenberg, sob a presidência do
reverendo padre Martinho Lutero, mestre de Artes e de Santa Teologia e
professor catedrático desta última, naquela localidade. Por esta razão, ele solicita
que os que não puderem estar presentes e debater conosco oralmente o façam por
escrito, mesmo que ausentes. Em nome do nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.
1. Ao dizer: "Fazei
penitência", etc. [Mt 4.17], o nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis que
toda a vida dos fiéis fosse penitência.
2. Esta penitência não pode ser
entendida como penitência sacramental (isto é, da confissão e satisfação
celebrada pelo ministério dos sacerdotes).
3. No entanto, ela não se refere
apenas a uma penitência interior; sim, a penitência interior seria nula se,
externamente, não produzisse toda sorte de mortificação da carne.
4. Por consequência, a pena
perdura enquanto persiste o ódio de si mesmo (isto é a verdadeira penitência
interior), ou seja, até a entrada do reino dos céus.
5. O papa não quer nem pode
dispensar de quaisquer penas senão daquelas que impôs por decisão própria ou
dos cânones.
6. O papa não tem o poder de
perdoar culpa a não ser declarando ou confirmando que ela foi perdoada por
Deus; ou, certamente, perdoados os casos que lhe são reservados. Se ele
deixasse de observar essas limitações, a culpa permaneceria.
7. Deus não perdoa a culpa de
qualquer pessoa sem, ao mesmo tempo, sujeitá-la, em tudo humilhada, ao
sacerdote, seu vigário.
8. Os cânones penitenciais são
impostos apenas aos vivos; segundo os mesmos cânones, nada deve ser imposto aos
moribundos.
9. Por isso, o Espírito Santo nos
beneficia através do papa quando este, em seus decretos, sempre exclui a
circunstância da morte e da necessidade.
10. Agem mal e sem conhecimento
de causa aqueles sacerdotes que reservam aos moribundos penitências canônicas
para o purgatório.
11. Essa cizânia de transformar a
pena canônica em pena do purgatório parece ter sido semeada enquanto os bispos
certamente dormiam.
12. Antigamente se impunham as
penas canônicas não depois, mas antes da absolvição, como verificação da
verdadeira contrição.
13. Através da morte, os
moribundos pagam tudo e já estão mortos para as leis canônicas, tendo, por
direito, isenção das mesmas.
14. Saúde ou amor imperfeito no
moribundo necessariamente traz consigo grande temor, e tanto mais quanto menor
for o amor.
15. Este temor e horror por si
sós já bastam (para não falar de outras coisas) para produzir a pena do
purgatório, uma vez que estão próximos do horror do desespero.
16. Inferno, purgatório e céu
parecem diferir da mesma forma que o desespero, o semidesespero e a segurança.
17. Parece necessário, para as
almas no purgatório, que o horror devesse diminuir à medida que o amor
crescesse.
18. Parece não ter sido provado,
nem por meio de argumentos racionais nem da Escritura, que elas se encontrem
fora do estado de mérito ou de crescimento no amor.
19. Também parece não ter sido
provado que as almas no purgatório estejam certas de sua bem-aventurança, ao
menos não todas, mesmo que nós, de nossa parte, tenhamos plena certeza disso.
20. Portanto, por remissão plena
de todas as penas, o papa não entende simplesmente todas, mas somente aquelas
que ele mesmo impôs.
21. Erram, portanto, os
pregadores de indulgências que afirmam que a pessoa é absolvida de toda pena e
salva pelas indulgências do papa.
22. Com efeito, ele não dispensa
as almas no purgatório de uma única pena que, segundo os cânones, elas deveriam
ter pago nesta vida.
23. Se é que se pode dar algum
perdão de todas as penas a alguém, ele, certamente, só é dado aos mais perfeitos,
isto é, pouquíssimos.
24. Por isso, a maior parte do
povo está sendo necessariamente ludibriada por essa magnífica e indistinta
promessa de absolvição da pena.
25. O mesmo poder que o papa tem
sobre o purgatório de modo geral, qualquer bispo e cura tem em sua diocese e
paróquia em particular.
26. O papa faz muito bem ao dar
remissão às almas não pelo poder das chaves (que ele não tem), mas por meio de
intercessão.
27. Pregam doutrina mundana os
que dizem que, tão logo tilintar a moeda lançada na caixa, a alma sairá voando
[do purgatório para o céu].
28. Certo é que, ao tilintar a
moeda na caixa, pode aumentar o lucro e a cobiça; a intercessão da Igreja,
porém, depende apenas da vontade de Deus.
29. E quem é que sabe se todas as
almas no purgatório querem ser resgatadas, como na história contada a respeito
de São Severino e São Pascoal?
30. Ninguém tem certeza da
veracidade de sua contrição, muito menos de haver conseguido plena remissão.
31. Tão raro como quem é
penitente de verdade é quem adquire autenticamente as indulgências, ou seja, é
raríssimo.
32. Serão condenados em
eternidade, juntamente com seus mestres, aqueles que se julgam seguros de sua
salvação através de carta de indulgência.
33. Deve-se ter muita cautela com
aqueles que dizem serem as indulgências do papa aquela inestimável dádiva de
Deus através da qual a pessoa é reconciliada com Ele.
34. Pois aquelas graças das
indulgências se referem somente às penas de satisfação sacramental,
determinadas por seres humanos.
35. Os que ensinam que a
contrição não é necessária para obter redenção ou indulgência, estão pregando
doutrinas incompatíveis com o cristão.
36. Qualquer cristão que está
verdadeiramente contrito tem remissão plena tanto da pena como da culpa, que
são suas dívidas, mesmo sem uma carta de indulgência.
37. Qualquer cristão verdadeiro,
vivo ou morto, participa de todos os benefícios de Cristo e da Igreja, que são
dons de Deus, mesmo sem carta de indulgência.
38. Contudo, o perdão distribuído
pelo papa não deve ser desprezado, pois – como disse – é uma declaração da
remissão divina.
39. Até mesmo para os mais doutos
teólogos é dificílimo exaltar simultaneamente perante o povo a liberalidade de
indulgências e a verdadeira contrição.
40. A verdadeira contrição
procura e ama as penas, ao passo que a abundância das indulgências as afrouxa e
faz odiá-las, ou pelo menos dá ocasião para tanto.
41. Deve-se pregar com muita
cautela sobre as indulgências apostólicas, para que o povo não as julgue
erroneamente como preferíveis às demais boas obras do amor.
42. Deve-se ensinar aos cristãos
que não é pensamento do papa que a compra de indulgências possa, de alguma
forma, ser comparada com as obras de misericórdia.
43. Deve-se ensinar aos cristãos
que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado, procedem melhor do que se
comprassem indulgências.[6]
44. Ocorre que através da obra de
amor cresce o amor e a pessoa se torna melhor, ao passo que com as indulgências
ela não se torna melhor, mas apenas mais livre da pena.
45. Deve-se ensinar aos cristãos
que quem vê um carente e o negligencia para gastar com indulgências obtém para
si não as indulgências do papa, mas a ira de Deus.
46. Deve-se ensinar aos cristãos
que, se não tiverem bens em abundância, devem conservar o que é necessário para
sua casa e de forma alguma desperdiçar dinheiro com indulgência.
47. Deve-se ensinar aos cristãos
que a compra de indulgências é livre e não constitui obrigação.
48. Deve ensinar-se aos cristãos
que, ao conceder perdões, o papa tem mais desejo (assim como tem mais
necessidade) de oração devota em seu favor do que do dinheiro que se está
pronto a pagar.
49. Deve-se ensinar aos cristãos
que as indulgências do papa são úteis se não depositam sua confiança nelas,
porém, extremamente prejudiciais se perdem o temor de Deus por causa delas.
50. Deve-se ensinar aos cristãos
que, se o papa soubesse das exações dos pregadores de indulgências, preferiria
reduzir a cinzas a Basílica de S. Pedro a edificá-la com a pele, a carne e os
ossos de suas ovelhas.
51. Deve-se ensinar aos cristãos
que o papa estaria disposto – como é seu dever – a dar do seu dinheiro àqueles muitos
de quem alguns pregadores de indulgências extorquem ardilosamente o dinheiro,
mesmo que para isto fosse necessário vender a Basílica de S. Pedro.
52. Vã é a confiança na salvação
por meio de cartas de indulgências, mesmo que o comissário ou até mesmo o
próprio papa desse sua alma como garantia pelas mesmas.
53. São inimigos de Cristo e do
Papa aqueles que, por causa da pregação de indulgências, fazem calar por
inteiro a palavra de Deus nas demais igrejas.
54. Ofende-se a palavra de Deus
quando, em um mesmo sermão, se dedica tanto ou mais tempo às indulgências do
que a ela.
55. A atitude do Papa
necessariamente é: se as indulgências (que são o menos importante) são
celebradas com um toque de sino, uma procissão e uma cerimônia, o Evangelho
(que é o mais importante) deve ser anunciado com uma centena de sinos,
procissões e cerimônias.
56. Os tesouros da Igreja, a
partir dos quais o papa concede as indulgências, não são suficientemente
mencionados nem conhecidos entre o povo de Cristo.
57. É evidente que eles,
certamente, não são de natureza temporal, visto que muitos pregadores não os
distribuem tão facilmente, mas apenas os ajuntam.
58. Eles tampouco são os méritos
de Cristo e dos santos, pois estes sempre operam, sem o papa, a graça do ser
humano interior e a cruz, a morte e o inferno do ser humano exterior.
59. S. Lourenço disse que os
pobres da Igreja são os tesouros da mesma, empregando, no entanto, a palavra
como era usada em sua época.
60. É sem temeridade que dizemos
que as chaves da Igreja, que foram proporcionadas pelo mérito de Cristo,
constituem estes tesouros.
61. Pois está claro que, para a
remissão das penas e dos casos especiais, o poder do papa por si só é
suficiente.
62. O verdadeiro tesouro da
Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus.
63. Mas este tesouro é certamente
o mais odiado, pois faz com que os primeiros sejam os últimos.
64. Em contrapartida, o tesouro
das indulgências é certamente o mais benquisto, pois faz dos últimos os
primeiros.
65. Portanto, os tesouros do
Evangelho são as redes com que outrora se pescavam homens possuidores de
riquezas.
66. Os tesouros das indulgências,
por sua vez, são as redes com que hoje se pesca a riqueza dos homens.
67. As indulgências apregoadas
pelos seus vendedores como as maiores graças realmente podem ser entendidas
como tais, na medida em que dão boa renda.
68. Entretanto, na verdade, elas
são as graças mais ínfimas em comparação com a graça de Deus e a piedade da
cruz.
69. Os bispos e curas têm a
obrigação de admitir com toda a reverência os comissários de indulgências
apostólicas.
70. Têm, porém, a obrigação ainda
maior de observar com os dois olhos e atentar com ambos os ouvidos para que
esses comissários não preguem os seus próprios sonhos em lugar do que lhes foi
incumbidos pelo papa.
71. Seja excomungado e
amaldiçoado quem falar contra a verdade das indulgências apostólicas.
72. Seja bendito, porém, quem
ficar alerta contra a devassidão e licenciosidade das palavras de um pregador
de indulgências.
73. Assim como o papa, com razão,
fulmina aqueles que, de qualquer forma, procuram defraudar o comércio de
indulgências,
74. muito mais deseja fulminar
aqueles que, a pretexto das indulgências, procuram fraudar a santa caridade e
verdade.
75. A opinião de que as
indulgências papais são tão eficazes a ponto de poderem absolver um homem mesmo
que tivesse violentado a mãe de Deus, caso isso fosse possível, é loucura.
76. Afirmamos, pelo contrário,
que as indulgências papais não podem anular sequer o menor dos pecados venais
no que se refere à sua culpa.
77. A afirmação de que nem mesmo
São Pedro, caso fosse o papa atualmente, poderia conceder maiores graças é
blasfêmia contra São Pedro e o Papa.
78. Dizemos contra isto que
qualquer papa, mesmo São Pedro, tem maiores graças que essas, a saber, o
Evangelho, as virtudes, as graças da administração (ou da cura), etc., como
está escrito em I.Coríntios XII.
79. É blasfêmia dizer que a cruz
com as armas do papa, insigneamente erguida, equivale à cruz de Cristo.
80. Terão que prestar contas os
bispos, curas e teólogos que permitem que semelhantes sermões sejam difundidos
entre o povo.
81. Essa licenciosa pregação de
indulgências faz com que não seja fácil nem para os homens doutos defender a
dignidade do papa contra calúnias ou questões, sem dúvida argutas, dos leigos.
82. Por exemplo: Por que o papa
não esvazia o purgatório por causa do santíssimo amor e da extrema necessidade
das almas – o que seria a mais justa de todas as causas –, se redime um número
infinito de almas por causa do funestíssimo dinheiro para a construção da
basílica – que é uma causa tão insignificante?
83. Do mesmo modo: Por que se
mantêm as exéquias e os aniversários dos falecidos e por que ele não restitui
ou permite que se recebam de volta as doações efetuadas em favor deles, visto
que já não é justo orar pelos redimidos?
84. Do mesmo modo: Que nova
piedade de Deus e do papa é essa que, por causa do dinheiro, permite ao ímpio e
inimigo redimir uma alma piedosa e amiga de Deus, mas não a redime por causa da
necessidade da mesma alma piedosa e dileta por amor gratuito?
85. Do mesmo modo: Por que os
cânones penitenciais – de fato e por desuso já há muito revogados e mortos –
ainda assim são redimidos com dinheiro, pela concessão de indulgências, como se
ainda estivessem em pleno vigor?
86. Do mesmo modo: Por que o
papa, cuja fortuna hoje é maior do que a dos ricos mais Crassos, não constrói
com seu próprio dinheiro ao menos esta uma Basílica de São Pedro, ao invés de
fazê-lo com o dinheiro dos próprios fiéis?
87. Do mesmo modo: O que é que o
papa perdoa e concede àqueles que, pela contrição perfeita, têm direito à plena
remissão e participação?
88. Do mesmo modo: Que benefício
maior se poderia proporcionar à Igreja do que se o papa, assim como agora o faz
uma vez, da mesma forma concedesse essas remissões e participações cem vezes ao
dia a qualquer dos fiéis?
89. Já que, com as indulgências,
o papa procura mais a salvação das almas do que o dinheiro, por que suspende as
cartas e indulgências, outrora já concedidas, se são igualmente eficazes?
90. Reprimir esses argumentos
muito perspicazes dos leigos somente pela força, sem refutá-los apresentando
razões, significa expor a Igreja e o papa à zombaria dos inimigos e fazer os
cristãos infelizes.
91. Se, portanto, as indulgências
fossem pregadas em conformidade com o espírito e a opinião do papa, todas essas
objeções poderiam ser facilmente respondidas e nem mesmo teriam surgido.
92. Portanto, fora com todos
esses profetas que dizem ao povo de Cristo "Paz, paz!" sem que haja
paz!
93. Que prosperem todos os
profetas que dizem ao povo de Cristo "Cruz! Cruz!" sem que haja cruz!
94. Devem-se exortar os cristãos
a que se esforcem por seguir a Cristo, sua cabeça, através das penas, da morte
e do inferno.
95. E que confiem entrar no céu
antes passando por muitas tribulações do que por meio da confiança da paz.
ENCONTRO COM OS REPRESENTANTES DO
CONSELHO
DA «IGREJA EVANGÉLICA NA ALEMANHA»
DISCURSO DO PAPA BENTO XVI
Sala do Capítulo do ex-Convento
dos Agostinianos de Erfurt
Sexta-feira, 23 de Setembro de 2011
Ilustres Senhoras e Senhores!
Ao tomar a palavra, quero antes
de mais nada agradecer cordialmente esta oportunidade de nos encontrarmos aqui.
A minha particular gratidão vai para Vossa Excelência, amado Irmão Presidente
Schneider, que me deu as boas-vindas e, com suas palavras, me acolheu no vosso
meio. Com toda a franqueza do seu coração, Vossa Excelência exprimiu
abertamente a fé verdadeiramente comum, o desejo de unidade. E nós sentimo-nos
felizes ainda porque considero que esta assembleia e os nossos encontros são
celebrados também como a festa da fé que temos em comum. Além disso quero
agradecer a todos pelo vosso dom de podermos conversar juntos como cristãos
aqui, neste lugar histórico.
Para mim, como Bispo de Roma, é
um momento de profunda emoção encontrar-vos aqui, no antigo convento
agostiniano de Erfurt. Como acabámos de ouvir, Lutero estudou teologia aqui.
Aqui celebrou a sua primeira missa. Contra a vontade do pai, abandonou os
estudos de jurisprudência para estudar teologia e encaminhar-se para o
sacerdócio na Ordem de Santo Agostinho. E a incentivá-lo neste caminho não era
um pormenor ou outro; o que não lhe dava paz era a questão sobre Deus, que
constituiu a paixão profunda e a mola da sua vida e de todo o seu itinerário.
«Como posso ter um Deus misericordioso?»: tal era a pergunta que lhe
atravessava o coração e estava por detrás de cada pesquisa teológica e de cada
luta interior. Para Lutero, a teologia não era mera questão académica, mas a
luta interior consigo mesmo, que, no fim de contas, era uma luta a propósito de
Deus e com Deus.
«Como posso ter um Deus
misericordioso?» O facto que esta pergunta tenha sido a força motriz de todo o
seu caminho, não cessa de maravilhar o meu coração. Com efeito, hoje quem se
preocupa ainda com isto, mesmo entre os cristãos? Que significa a questão de
Deus na nossa vida, no nosso anúncio? Hoje a maioria das pessoas, mesmo
cristãs, dá por suposto que Deus, em última análise, não se interessa dos
nossos pecados e das nossas virtudes. Ele bem sabe que todos nós não passamos
de carne. Se se acredita ainda num além e num juízo de Deus, praticamente quase
todos pressupõem que Deus terá de ser generoso e, no fim de contas, na sua
misericórdia ignorar as nossas pequenas faltas. A questão já não nos preocupa.
Mas, verdadeiramente são assim pequenas as nossas faltas? Porventura não está o
mundo a ser devastado pela corrupção dos grandes, mas também dos pequenos, que
pensam apenas na própria vantagem? Porventura não é ele devastado por causa do
poder da droga, que vive, por um lado, da ambição de vida e de dinheiro e, por
outro, da avidez de prazer das pessoas que a ela se abandonam? Não está ele
porventura ameaçado por uma crescente predisposição à violência que não raro se
dissimula sob a aparência de religiosidade? Poderiam a fome e a pobreza
devastar assim regiões inteiras do mundo, se estivesse mais vivo em nós o amor
de Deus e, derivado dele, o amor ao próximo, às criaturas de Deus que são os
homens? E poderiam continuar as perguntas nesta linha. Não, o mal não é uma
ridicularia. Mas não seria forte, se verdadeiramente colocássemos Deus no
centro da nossa vida. Esta pergunta que desinquietava Lutero – Qual é a posição
de Deus a meu respeito, como apareço a seus olhos? – deve tornar-se de novo,
certamente numa forma diversa, também a nossa pergunta, não académica mas
concreta. Penso que este constitui o primeiro apelo que deveremos escutar no
encontro com Martinho Lutero.
Depois é importante também isto: Deus, o único
Deus, o Criador do céu e da terra, é algo de diverso duma hipótese filosófica
sobre a origem do universo. Este Deus tem um rosto e falou-nos. No homem Jesus
Cristo, Ele tornou-Se um de nós: verdadeiro Deus e, simultaneamente, verdadeiro
homem. O pensamento de Lutero, a sua espiritualidade inteira era totalmente
cristocêntrica. Para Lutero, o critério hermenêutico decisivo na interpretação
da Sagrada Escritura era «aquilo que promove Cristo». Mas isto pressupõe que
Cristo seja o centro da nossa espiritualidade e que o amor por Ele, o viver
juntamente com Ele, oriente a nossa vida.
Ora poder-se-ia talvez dizer:
Está bem, mas o que é que tudo isto tem a ver com a nossa situação ecuménica?
Porventura não será tudo isto apenas uma tentativa de iludir, com uma inundação
de palavras, os problemas urgentes onde se esperam progressos práticos,
resultados concretos? A respeito disto, respondo: a coisa mais necessária para
o ecumenismo é primariamente que, sob a pressão da secularização, não percamos,
quase sem dar por isso, as grandes coisas que temos em comum, que por si mesmas
nos tornam cristãos e que nos ficaram como dom e tarefa. O erro do período
confessional foi ter visto, na maior parte das coisas, apenas aquilo que
separa, e não ter percebido de modo existencial o que temos em comum nas
grandes directrizes da Sagrada Escritura e nas profissões de fé do cristianismo
antigo. Para mim, isto constitui o grande progresso ecuménico dos últimos
decénios: termo-nos dado conta desta comunhão e, no rezar e cantar juntos, no
compromisso comum em prol da ética cristã face ao mundo, no testemunho comum do
Deus de Jesus Cristo neste mundo, reconhecermos tal comunhão como o nosso comum
e imorredouro alicerce.
É certo que o perigo de a perder
não é irreal. Queria brevemente fazer notar dois aspectos. Nos últimos tempos,
a geografia do cristianismo mudou profundamente e continua a mudar. Perante uma
forma nova de cristianismo, que se difunde com um dinamismo missionário imenso,
por vezes preocupante nas suas formas, as Igrejas confessionais históricas
ficam muitas vezes perplexas. Trata-se de um cristianismo de escassa densidade
institucional, com pouca bagagem racional, sendo ainda menor a bagagem
dogmática, e também com pouca estabilidade. Este fenómeno mundial – que me é
continuamente descrito pelos bispos de todo o mundo – põe-nos a todos perante
esta questão: Que tem a dizer-nos de positivo e de negativo esta nova forma de
cristianismo? Em todo o caso, coloca-nos novamente perante a pergunta sobre o
que permanece sempre válido e o que pode ou deve ser mudado, perante a questão
relativa à nossa opção fundamental na fé.
Mais profundo e, no nosso país,
mais inquietante é o segundo desafio para toda a cristandade; dele quero agora
falar-vos: trata-se do contexto do mundo secularizado, em que temos hoje de
viver e testemunhar a nossa fé. A ausência de Deus na nossa sociedade faz-se
mais pesada; a história da sua revelação, de que nos fala a Escritura, parece
colocada num passado que se distancia sempre mais. Porventura será preciso
ceder à pressão da secularização, tornar-se moderno através duma mitigação da
fé? Naturalmente, a fé deve ser repensada e sobretudo vivida hoje de um modo
novo, para se tornar uma realidade que pertença ao presente. Para isso ajuda
não a mitigação da fé, mas somente o vivê-la integralmente no nosso hoje. Esta
constitui uma tarefa ecuménica central, na qual nos devemos ajudar mutuamente:
a crer de modo mais profundo e vivo. Não serão as tácticas a salvar-nos, a
salvar o cristianismo, mas uma fé repensada e vivida de modo novo, através da
qual Cristo, e com Ele o Deus vivo,
entre neste nosso mundo. Tal como os mártires do período nazista nos
aproximaram uns dos outros e suscitaram a primeira grande abertura ecuménica,
assim também hoje a fé, vivida a partir do íntimo de nós mesmos, num mundo
secularizado, é a força ecuménica mais poderosa que nos reúne, guiando-nos para
a unidade no único Senhor. E por isso Lhe pedimos a graça de aprender de novo
viver a fé, para assim nos podermos tornar um só.