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domingo, 28 de janeiro de 2018

"Os meus olhos choram sempre"...



Lutgarda de Caires foi uma poetisa algarvia a quem cabe a honra de ter sido a fundadora do actual "Natal dos Hospitais", então chamado "Natal das Crianças dos Hospitais".

Deu a esta quadra todo o sentido da palavra bem portuguesa - SAUDADE - enquanto descrição de uma mistura de sentimentos, onde a perda irremediável, a falta ou a distância do ente querido é geradora de um amor que não morre na solidão de quem o sente.
A poetisa perdeu uma filha de tenra idade e tudo leva a crer que esta quadra é um reflexo sentido da sua dor de mãe.

Pela sua força etimológica a palavra saudade ecoa em Portugal do Minho ao Algarve e o seu eco chega distinto às ilhas atlânticas, e é de tal modo um eco vivo que nos tem chegado como herança das gerações passadas e havemos de deixar às futuras.

Não cabe aqui falar detalhadamente da mulher ilustre de Vila Real de Santo António, mas cabe dizer que ela foi uma intrépida lutadora social, no tempo amargo que Portugal viveu antes e depois da implantação da República, pelo que conhecer a sua obra literária e social é um dever.

sábado, 27 de janeiro de 2018

"Bate a fome à porta deles"...



"O nosso olhar é espelho"...



Dois sonetos de Virgínia Vitorino


Renúncia

Fui nova, mas fui triste... Só eu sei
Como passou por mim a mocidade...
Cantar era o dever da minha idade,
Devia ter cantado e não cantei...

Fui bela... Fui amada e desprezei...
Não quis beber o filtro da ansiedade.
Amar era o destino, a claridade...
Devia ter amado e não amei...

Ai de mim!... Nem saudades, nem desejos...
Nem cinzas mortas... Nem calor de beijos...
Eu nada soube, eu nada quis prender...

E o que me resta?! Uma amargura infinda...
Ver que é, para morrer, tão cedo ainda...
E que é tão tarde já, para viver!...




Eu que cheguei a ter essa alegria

Eu que cheguei a ter essa alegria
de junto ao meu possuir teu coração!
Eu que julgava eterna a duração
do voluptuoso amor que nos unia,

sou ‒  apagada a última ilusão,
morto o deslumbramento em que vivia,
—  um cego que ao lembrar a luz do dia
sente mais negra ainda a escuridão.

Tu me deste a ventura mais perfeita,
perdi-a e dei-te a chama insatisfeita
dessa imensa paixão com que te quis…

Hoje, o que eu sinto, inútil, revoltada,
não é mágoa de ser desgraçada,
—  é pena de  ter sido tão feliz.
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Ante estes dois sonetos dessa ilustre filha de Alcobaça que a Literatura Portuguesa conhece pelo nome de  Virgínia Vitorino, apetece fechar os olhos, reflectir na sua mensagem e render silenciosamente uma homenagem sentida à poetisa e dramaturga, agraciada pelo Governo português em 1929 e 1932 e pelo Governo espanhol em 1930 e, hoje, indevidamente esquecida por um Poder que não preza a Cultura nem o nome dos que lhe deram a Verdade do seu nome.

Deus que é bom e conhece todas as criaturas que passaram e souberam escrever o seu Nome, tenha no assento etéreo e no lugar devido a chama da sua alma que foi um lume que se apagou no tempo que lhe foi dado viver, mas cujo calor continua a viver nas suas poesias, como estas que são um marco existencial que continua a marcar caminhos.

Uma lembrança de Bulhão Pato e da sua "Paquita"

Fac-símile da caricatura de Bulhão Pato 
in, do Jornal "Azulejos" de 10 de Fevereiro de 1908
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Bulhão Pato, como ficou conhecido, de baptismo teve os nomes de Raimundo António seguido daqueles apelidos ifentificatórios na História da Literatura Portuguesa, nasceu em Bilbau (Espanha) filho de um fidalgo português em 1829, sendo menino quando rebentou a primeira "guerra carlista" em 1833, era então um jovem quando esta terminou (1840) mas já então a residir em Lisboa onde chegou em  1837, mas marcado, embora distante, no tempo da sua adolescência pela segunda guerra entre os mesmos contendores - absolutistas contra liberais - (1846-1849).

Nas suas memórias diz o Poeta que, «Nessa época a cena política cheirava a pólvora e a sangue! O ódio entre carlistas e cristinos não era menor do que o ódio entre miguelistas e constitucionais" que a sua adolescência viveu em Portugal, mas essas lutas fratricidas marcaram indelevelmente a sua sensibilidade o que o levou em toda a sua obra a ter um repúdio pela violência pela ambição desmedida e prepotência dos mais fortes, contrapondo-lhe a sua ideia de justiça derivada da doutrina cristã.

Foi, por isso que Bulhão Pato nunca se envolveu na acção político-partidária - embora tivesse apadrinhado a "Revolução de Maria da Fonte", travando a sua luta de pena em punho para se alcandorar nos corações dos que o apoiavam, reconhecendo-o como um modelo de virtudes, não tardando a ser requisitado pela imprensa da época, aparecendo o seu famoso poema "Paquita" - começado a ser escrito na Ajuda, em casa de Alexandre Herculano, um seu indefectível amigo ao longo da vida - na Revista Peninsular, onde se desenrolam as aventuras e desventuras dessa filha da Andaluzia e de seu primo Pepe.

O Canto I da Paquita começa com esta sextilha:



E termina esta Canto com este poema dedicado - A JÚLIA - no tempo em que Pepe rumara a Salamanca e uma notícia de jornal informa Paquita daqueles versos a Júlia, onde começa a desenrolar-se o drama.

    A JÚLIA

Naquela deserta ermida,
Que alveja na serrania,
Deu sinal, Júlia querida,
O sino da Ave-Maria.

Este som tão conhecido
Da nossa inocente infância,
Como agora vem sentido
Trazer-me viva à lembrança,
Toda essa doce fragrância
Daquele existir d'então!

Ai! lembrança não, saudade!
Saudade Júlia, tão funda...
Mas tão grata, que me inunda
De ventura o coração.

Espera... se neste instante
Mandasse à terra o Senhor,
Anjo de meigo semblante,
E aos dias daquela idade
Nos tornasse o seu amor...
Oh! responde-me, querida,
Se quanto depois na vida
De belo nos há passado,
Não devera ser trocado
Por esses dias em flor?!

Que lá vão! lembras-te ainda?
Tu risonha doidejavas,
Por entre as moitas de flores
Como elas fragrante e linda.
Quando o som pausado e lento
D'Ave-Maria escutavas,
Então naquele momento
Aos pés da Cruz te prostravas!...

Que fronte de anjo era a tua
Vista ao reflexo amoroso
Dos frouxos raios da lua!
Uma tarde, ao pôr do sol,
No recosto pedregoso
Do monte nos encontramos;
Lembras-te! essa hora bateu,
Porém nós mal a escutamos!
Os olhos, tu perturbada,
Baixavas, e no semblante
Não sei que luz te brilhava,
Eu sei que naquele instante
O prazer me enlouqueceu.

Oh! fatal loucura aquela!
Tinha-me ali tão perdido,
Que, sem mais ver, delirante
Nos braços te arrebatei.

Não sei por onde vagava,
Nem quanto, nem como andei;
Só me lembra que a ventura
Ali real me falava,
E que aos incertos lampejos
Das estrelas desmaiadas,
Imprimi ardentes beijos
Nas tuas faces rosadas!

Foi breve aquele delírio;
Ao menos breve o julguei;
E quando, outra vez à vida
De sobressalto voltei,
Desbotada como um lírio
Pelos vendavais batido,
Nos meus braços te encontrei!

                                                     
No Poema, Pepe, recebe desde a infância o amor puro de Paquita e, no mesmo, este herói masculino ora é envolvido em affaires amorosos, ora é apresentado a cumprir o papel de soldado a que junta a manifestação das suas paixões violentas, tecendo Bulhão Pato a sua ternura poética na beleza e fragilidade de Paquita, a heroína romântica. lembrando-se do beijo da despedida daquela separação forçada que a força para o caminho ascético que o Poema narrativo em sextilhas decassilábicas vai desfiando nos seus dezasseis cantos onde a heroína só comparece com assiduidade nos três primeiros, no sétimo, décimo primeiro e no décimo sexto como vaga lembrança na memória de Pepe.

Como nota final, aponta-se que tendo sido Bulhão Pato um homem adepto da não violência política de que foi testemunha na sua primeira idade e nos tempos da sua juventude, como já se disse, neste aspecto relacional dos dois sexos não pode fugir a ser testemunha do seu tempo, da fragilidade feminina ante o despotismo amoroso do homem pelo que o livro PAQUITA sendo uma narração fiel da época final do século XIX, só por isso merece a pena lembrá-o.

A mudança de atitudes surgidas no século seguinte de maior respeito pela mulher foi um avanço civilizacional, porque a mulher superior ao homem em muitos aspectos da interioridade humana - sendo como é, a fonte da vida - sofreu por demais ao longo dos tempos a arrogância masculina que lhe advinha da sua força física mas sempre lhe faltou no acompanhamento da sua força mental.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

"Senhora" - Um poema de amor espiritualizado


Fac-símile do poema publicado pelo Jornal "Azulejos" de 4 de Novembro de 1907
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Este poema, cujo autor não deixou - que eu conheça o seu nome no meio literário nacional do século XX - é, contudo, um madrigal na verdadeira acepção do termo, pelo sentimento lisonjeiro, terno e amoroso em que o Poeta exprime de um modo veemente o seu amor a uma trança negra ou nega trança da feliz SENHORA que recebeu a graça de saber que um terno amor de poeta / não é um simples amor...

Perguntarão, possivelmente, os que lerem estes conceitos, da razão que me levou a fazê-los e eu responderei que a tanto me senti obrigado pela beleza rítmica da composição, filha dilecta de um tempo em que o modernismo se fez sentir em  Portugal através de Fernando Pessoa e do seu heterónimo Alberto Caeiro, onde o bucolismo influenciou gerações, como a do autor deste poema SENHORA, que é um hino de amor todo doirade sol, para nunca ser - como ele afirma - uma c´rôa d´abrolhos / O amor dos meus afectos.

Porque o amor simples, terno e dedicado assim devia continuara a ser, ao invés de um sentimento do tempo que passa - a que se dá o mesmo nome de amor - mas é, desvirtuado nas suas raízes mais belas pela ligeireza como ele se deixa prender às armadilhas de um mundo que perdeu algo que tem a beleza do amor puro em que se afirma,  como diz Arthur C. d'Oliveira: Embora me queirais muito / Quero-vos mais que me qu'ereis.


É, pois, neste sentimento nobre que se dispõe a dar mais que a receber que a Humanidade, um dia, tem de voltar a acreditar e viver assim, em conformidade com este conceito espiritual, hoje desprezado em tantas mentes

Uma lembrança de Ramalho Ortigão

in, Jornal "Azulejos" de 4 de Novembro de 1907
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A "ramalhal figura" assim cognominada por Fradique Mendes, um heterónimo colectivo de um poeta fictício criado pelo "Grupo do Cenáculo" foi pela sua irreverência uma personagem que retratou bem aquela tertúlia literária, não lhe tendo escapado o porte possante de Ramalho Ortigão que fazia parte daquele Grupo irreverente que na foto aparece com as mãos apoiadas na aba do chapéu.


Ramalho Ortigão bem merece ser recordado pela sua vasta produção literária de onde sobressai as suas "FARPAS" como esta que ele dedicou ao "seu" Porto e onde ele traça numa rara e bem conseguida "aguarela literária" a partir de uma viagem começada na estação de comboios de Santa Apolónia, a descrição lúdica, por vezes, e outras vezes, crítica de costumes da cidade, sem contudo deixar de frisar que:

Porto enfim cessou de ser província. É segunda capital (segunda por ordem cronológica, bem entendido!) e a sua alta burguesia constitui para a corte uma espécie de casa filial, com as mesmas fazendas, somente com melhor sortido e mais barato. Em vez de levantarem arcos de triunfo com alegorias e versos patrióticos, os próceres do comércio vão dançar a palácio.


O PORTO
 Julho, 1883.

A companhia de zarzuela que estava no Teatro dos Recreios veio para cá no mesmo comboio em que eu vim. Na estação do caminho-de-ferro, em Santa Apolónia, a sala de espera cheia. Eram as cantoras, os cantores, os coristas de um e de outro sexo, e o corpo de baile.
Elas, envoltas nas mantilhas, sobraçando sacos, trouxas de roupa e chapeleiras de papelão. Eles, de jaleco, com o chapéu carregado sobre o olho, sem gravata, barba por fazer e cigarro no beiço.
Jovens lusitanos, em trajo de esperar touros, estão no bota-fora, e prestam serviços às belas, segurando os sacos, os rolos dos agasalhos e as bocetas de cartão.

Conspícuos governadores civis e graves candidatos a deputados, que tinham vindo à Corte conferenciar com o Governo, circulam com ar austero, chapéu alto, guarda-pó de linho e frasco a tiracolo, por entre o rebuliço da multidão.
As vozes agudas das mulheres espanholas soltam no ar girândolas de perguntas e de respostas, cruzadas em diálogos através da atmosfera da sala, impregnada de um possante cheiro castelhano de gordura e de alho.
— Os senhores passageiros queiram subir para as carruagens; o comboio vai partir!
A estas palavras a multidão encapela-se na direção do comboio como um movimento de vaga. Trocam-se abraços e beijos, entre risadas estrídulas e nasais repicando como castanholas:
— Adiós, Lola! Adiós, Pepa! Adiós, Dolores!

Dentro de algumas carruagens ouvem-se harpejos beliscados nas guitarras, que começam a afinar. Por baixo dos vestidos arregaçados, pés curtos e ligeiros saltam aos estribos, e formas curvas, de uma elegância adunca, embebem-se para dentro do trem. Batem, caindo sucessivamente, os fechos das portinholas. A sineta da estação dá o sinal da partida.
Abalámos finalmente, ao som das seguidilhas entoadas nas carruagens de segunda classe e dos adeuses repetidos na gare entre acenos de chapéus e de lenços brancos.

Desde Santa Apolónia, à saída de Lisboa, até Campanhã, à entrada do Porto, a zarzuela não deixou nunca de exercer os seus efeitos. Ela declamou, cantou, tocou guitarra, tocou pandeiro, comeu chouriço e rogou pragas! Às três horas da madrugada, quando o comboio adormecido parou para receber água no meio de um pinhal, acordei aos gritos agudos de uma voz de mulher que bradava de uma das extremidades do longo trem:
— Pollo! Pollo!! Pollo!!!
Uma voz de homem, grossa, grave, arrastada, pachorrenta, contestou da extremidade oposta:
— Que se oferece?
A voz de soprano, que primeiramente chamara por Polia, perguntou:
— Como está Julia?
E a voz do baixo profundo respondeu:
— Dormindo!

Até para Júlia dormir era preciso que um dueto nos acordasse. Imaginem a bulha proporcional a Júlia desperta! a Júlia chupando laranjas! a Júlia comendo melão! a Júlia tamanco chocolate e embrulhando bifes num jornal no bufete do Entroncamento! a Júlia mordendo com voracidade em Coimbra as pencas de manjar branco!
De manhã, ao chegarmos a Aveiro, um lavrador do Ribatejo, que vinha em frente de mim no mesmo compartimento, esfregou os olhos, bocejou magnanimamente, espreguiçou-se erguendo os punhos cerrados para o teto da carruagem, e exclamou:

— Já me cheira a Minho. Daqui a nada estamos na região do País em que o dinheiro se não conta senão por mil cruzados e em que o máximo de uma colheita é um moia.
E, tendo acendido um cigarro, o do Ribatejo arrojou o fósforo queimado à estrada com um gesto cheio de desprezo pela região minhota em que Íamos entrar.
— Do Vouga para cima — continuou o ribatejano com azedume — a unidade deles para o dinheiro que foram ganhar ao Brasil é o conto de réis; para o trigo que eles mesmo cultivam é o salamim. Parlapatões!... Olhem para aquela eira! Aquilo aqui assim é a eira de um ricaço. Tem duas braças quadradas. E do tamanho de um lar nas cozinhas da minha terra.
Um passageiro, que tinha bilhete para Braga e que ia na bancada do meu lado, interveio em defesa do Minho.
— Diga lá o senhor o que quiser da colheita dos trigos e do tamanho das eiras. Paisagem como esta é que o senhor não é capaz de me dar lá para baixo. Regale-se de estender os olhos pela frescura desses milhos e desses pinhais! E tudo salpicado de habitações graciosas, que denotam prosperidade e bem-estar. Faça-me o favor de olhar aqui por este postigo por aí fora até o mar. Veja lá se há nada mais pitoresco!
— É com o que lhe dão: com o pitoresco! — retorquiu o outro. — Um pitoresco de casinholas umas em cima das outras, que não pode um boi (com
licença) escornar no campo sem deitar abaixo uma parede. O senhor já viu nas lezírias, no campo de Almeirim, ao f m da tarde, no Verão, um campino parado no meio da planície, com o seu pampilho em punho e com o seu cavalo à rédea? . .. Isso é que eu chamo pitoresco, isso é que é belo, isso é que dá ao homem a sensação de liberdade e do valor.
— A liberdade dos campinas é boa! pelo uso que eles fazem dela é fresca a tal liberdade! ... De quem o senhor me vem falar?! Dos campinas! uma corja de mandriões, que não são capazes de deitar a mão a trabalho nenhum, que não prestam para nada senão para andarem a cavalo ao pé do gado, para dormirem de barriga para o ar nas eiras, para beberem vinho com os toureiros, e para roubarem os meloais e as vinhas... Uma raça de malandros!
— No Minho então não se rouba? Lá não vão aos melões, e às uvas, e às castanhas, e às pinhas?. ..
— Não, senhor; não vão.
— Então para que é que os proprietários levantam em redor das quintas os muros da altura de dois homens, com fundos de garrafas em cima, com ratoeiras dentro, e com cães, que ninguém passa nas estradas que eles não venham rosnar e ladrar aos valados com os focinhos negros arreganhados e os grandes rabos amarelos alçados como báculos?
— Cães de caça, senhor, cães de caça!
— Cães de caça de barrigas de pernas dos viandantes e dos mendigos; que também não há terra em que se mendigue mais do que no Minho! Todo o habitante pobre é de profissão pedinte. As crianças são educadas a pedir esmola, trotando ao lado das carruagens que passam nas estradas, choramingando e lamuriando em coro, de barriga ao léu e pernas encardidas de lama, com as cabeças tinhosas, sujas como bacorinhos, e descabeçando padres-nossos como beatas velhas. É uma infância vergonhosa e indecente, de que não podem sair senão homens pusilânimes, estúpidos, sem brio, ligados à terra passivamente como bezerros, incapazes de a honrar e de a defender. Vá lá para o Alentejo a ver se alguém pede esmola pelas estradas, ou se alguém se anda a desbarretar pelos caminhos diante de todo o bicho-careta que passa, unicamente porque o bicho-careta traz fechos de prata na jaleca e grilhão de ouro no relógio! Os próprios rendeiros, e os maiorais do conde de Sobral, do Ramalho de Évora, do Estêvão de Alcochete, falam-lhes de chapéu na cabeça, de igual para igual, como na Andaluzia e na Estremadura espanhola. Por nenhum dinheiro do mundo um alentejano, um estremenho ou um algarvio entraria nu num a latrina como fazem os minhotos para o negócio do estrume. Basta comparar as habitações alentejanas, esmeradamente asseadas, com os chiqueiros das famílias pobres no Minho.
— É porque no Minho não há cal.
— Mandem-na vir!
— É o que eles fazem; mas, como a cal não está no solo, o asseio não está nos costumes. Olhe Afife, como é uma povoação asseada! Porquê? Porque os de Afife são todos estucadores: é a especialidade da profissão que os familiariza com a cal. Onde a casa é negra o homem é sujo.
— O senhor cuida então que o que falta no Minho é cal? Pois eu entendo que o que lá falta é gente. A população do Minho é uma população de refugo. A emigração é um agente seletivo exercendo-se no sentido de operar a decadência. O minhoto mais forte, o mais robusto e mais inteligente vai para o Brasil...
— Enriquecer!
— Sim; enriquecer o Brasil com a sua inteligência e com o seu trabalho, e empobrecer a sua terra pela ausência da sua capacidade e da sua força no conflito da civilização local.
— Mas, graças aos capitais que regressam do Brasil, a província do Minho floresce e prospera.
— Prospera em casa novas forradas de azulejo, em grades de ferro pintadas de verde e de cor de ouro, em hortas ajardinadas, em capoeiras bem sortidas, e em caramanchões nos ângulos das quintas. Mas não prospera em trabalho nem em produção. O dinheiro aumenta nas mãos de alguns, mas o trabalho não aumenta na atividade geral. Em virtude das capacidades
subtraídas pela emigração, todas as indústrias minhotas desfalecem por falta de direção inteligente e esclarecida.
— Então a criação do gado não é uma indústria próspera?
— Ora, adeus! Então o senhor imagina que o minhoto cria gado? O minhoto engorda bois, o que é diferente. Engordar o boi não é propriamente uma indústria, é uma operação de fundos, uma colocação de capital, uma forma de pôr dinheiro a juro. Todas as indústrias que merecem verdadeiramente esse nome estão estacionárias ou decadentes. Veja em Guimarães a indústria dos panos de linho, a indústria da cutelaria, a indústria do couro; veja em Braga a indústria dos chapéus; veja em Vila do Conde a das rendas; veja em Viana, em Caminha, em Fão, em Esposende, a indústria das construções navais.
— O número das construções navais nos departamentos marítimos do Norte aumenta.
— Mas o número total de toneladas que as embarcações construídas comportam diminui, porque se não fazem já senão pequenas embarcações de cabotagem. Não há escolas profissionais, não há concursos rurais, não há museus de indústria, não há ensino, não há finalmente organização industrial.
— Mas também a não há no resto do País. Nas Caldas, por exemplo, a louça fabricada hoje é muito pior do que era há oitenta anos. Com uma tradição de modelos lindíssimos da escola de Bernardo Palissy, com um
esmalte incomparável, a cerâmica das Caldas não sai do período infantil da arte. Ainda ultimamente lá estive. O fabrico da louça faz-se pelos processos mais primitivos; não sabem amassar o barro, não o sabem cozer, não sabem fornear. Desconhecem completamente o uso do termómetro. Agora, quanto à emigração do Minho, tenho a dizer-lhe que nem todo o minhoto emigra para o Brasil. O senhor vê em Lisboa um grande número de artistas, de homens de letras e de homens de Estado que são do Norte do País.
— Isso mostra que o absentismo se dá por várias formas, mas os efeitos são os mesmos: no Minho falta gente. Há algum dinheiro, não digo que não, dinheiro de algibeira principalmente, dinheiro para despesas miúdas, .em maior quantidade do que na Estremadura, no Alentejo ou no Algarve. Mas que importância tem o dinheiro? para que diabo serve o dinheiro?
— Eu digo-lhe, meu rico senhor, o dinheiro serve principalmente para tudo, e remedeia para o resto

Os oito viajantes que enchiam os oito lugares do nosso vagão apoiaram todos unanimemente esta afirmativa, arregalando os olhos, dizendo em exclamações oh! oh! e bambeando aprovativamente as cabeças sonolentas e cheias de p<5.
No entanto, a frescura do mar, coada através dos pinhais, inundava-nos num banho de ar puro e balsâmico. As bouças de mato cobertas de flores cor de ouro, os fetos e as urzes, cintilantes do orvalho da noite, reluziam nos valados e nos taludes ao sol da manhã.
Em Aveiro as mulheres oferecem-nos os seus barrilinhos tradicionais de mexilhão e de ovos-moles.

Em Espinho os banheiros, vestidos de baeta, saídos do mar escorrendo água, entregam-nos os seus bilhetes de visita, enquanto os banhistas, passeando gravemente na estação, de chapéus de palha e sapatos brancos, com os seus bordões de cana-da-índia com argolas de prata, abrem o correio de Lisboa e percorrem com zelo os jornais da manhã.
Na Granja abrem-se as vidraças e os estores dos lindos cottages e dos frescos chalets situados à beira da estrada. Criadas de avental branco sacodem os tapetes ou colocam às janelas as gaiolas dos canários e as faianças com begónias. Grandes moitas de hortênsias abraçam as escadas exteriores dos pequenos prédios, e as crianças de bibes de linho com os seus chapéus derrubados, de palhoça, descem pela mão para a praia.

O panorama, extraordinariamente belo, que se descobre da grande ponte sobre o Douro começa a desenrolar aos nossos olhos os seus diferentes aspetos tão variados, tão imprevistos. O rio, liso, e espelhado como uma chapa de vidro azul e verde. Uma extensa cordilheira de colinas, cobertas de pinheirais e desenhando no espaço vaporoso e húmido as curvas mais suaves e as perspetivas mais graciosas e mais risonhas. À beira da água, sulcada de barcos, de cor escura, esguios, da forma de gôndolas venezianas, remados de pé com largas pás que bracejam silenciosas e lentas, arredondam-se em
grandes massas de um verde-escuro e espesso os velhos arvoredos das quintas do Freixo, da Oliveira, de Quebrantões e de Avintes.

Apeamo-nos finalmente na estação de Campanhã. Uma fila de carruagens sobre a linha dos elétricos. Um rumor diligente e alegre de tamancos novos sobre os largos passeios lajeados. Mulheres bem feitas, caminhando direitas, de cabeça alta, cintura fina solidamente torneada sobre os rins, e alegres lenços amarelos, de ramagens vermelhas, encruzados sobre a curva robusta do peito. Canastras bem tecidas, grandes como berços, cobertas de pano de algodão em listras azuis e encarnadas.
As carruagens americanas recebem tudo, gente, cestos de fruta, canastras, trouxas de roupa branca, caixotes, seirões com ferramentas. Dos vinte passageiros de Campanhã que tomam lugar connosco no carro americano dois têm escrófulas, e um tem uma grossa corrente de ouro no relógio e um grande brilhante pregado no peito da camisa. Um pequeno, ruivo, sardento, de olhos azuis, apregoa o Jornal da Minhaum. As mulinhas trotam bem. E todas as casas, de um e de outro lado da rua, têm à porta a cancelinha baixa, de pau, pintada de verde. Estamos no Porto.

Os melhoramentos materiais na cidade que acabo de entrever são, na verdade, consideráveis. As novas ruas, a prolongação da Boavista, a de Mouzinho da Silveira, paralela à rua das Flores, a de Passos Manuel, desde Santa Catarina à Rua de Sá da Bandeira, a rua que liga a estação do Pinheiro com a cidade, e outras, acham-se quase inteiramente guarnecidas de prédios e todos os prédios habitados.
Outro tanto sucede nos bairros novos do Palácio de Cristal e da Duquesa de Bragança.
O Bairro Herculano, entre o Jardim de S. Lázaro e as Fontainhas, é um recinto murado, fechado por uma grade de ferro, compreendendo duzentas ou trezentas casas, de rés-do-chão, ou de um andar, comodamente alinhadas, com um pequeno jardim comum, um mercado, lavadouros, enxugadoras, etc.

Está já delineado, com as ruas em esboço, o projetado bairro do Campo do Cirne, em frente do Cemitério do Repouso, ao lado da Rua do Heroísmo. E a nova ponte, que vem da serra do Pilar às proximidades do Paço do Bispo, demolirá e transformará em novas avenidas os bairros antigos do Barredo e da Sé.
Aqueles que há vinte anos partiram daqui, como eu, arriscam-se, regressando depois de mim, a não atinar com o seu caminho, a não encontrar a sua casa, nem a sua rua, nem os seus sítios.
Deixou de existir a antiga Rua do Souto, a das Congostas, a dos Mercadores, a da Bainharia e a tão pitoresca e tortuosa Rua da Reboleira, com o seu arco da Porta Nobre, as suas janelas em ressalto como as das velhas casas flamengas, e as suas tanoarias, por entre cuja frescura era tão bom no Verão passar à
sombra, no picante cheiro da aduela e dos vimes do vasilhame, ao vir da Foz em char-à-bancs sob o sol a pino!

Dir-se-ia que os nossos pais morreram para nós muito mais completamente do que morreram para eles os seus avós e os seus bisavós, levando consigo, ao desaparecerem, quase tudo quanto os rodeava na vida: a casa, o jardim, a rua que habitavam.
As modernas construções não têm aqui, como não têm no resto do País, carácter artístico. As casas novas do interior da cidade são tão chatas e tão inconfortáveis como aquelas que vieram substituir, e estão longe de dar ideia da encantadora reforma porque têm passado as edificações urbanas nos países setentrionais da Europa, especialmente a Prússia e o Hanôver.
A estrutura geral dos prédios apresenta, porém, um aspeto consistente, não desagradável à vista: os telhados de lousa, as fachadas revestidas de azulejos, as padieiras de granito, tão nitidamente esquadriadas, dão ao todo um ar rijo, saudável, alegre, harmonizado bem com os tons frescos da paisagem, com a verdura das colinas, com as árvores das praças, com os parreirais dos jardins, com as nebrinas do Douro esbatendo no vapor aquático, polvilhando de sol, o risonho contorno da casaria e das montanhas.
Têm os progressos do espírito acompanhado a evolução dos melhoramentos exteriores?
Esta questão é mais complexa, e não tenho tempo para a estudar em detalhe, nem espaço para a tratar por inteiro.

O que vou fazer é transmitir as minhas primeiras impressões de turista em viagem na minha própria terra, com a superficialidade profissional de um repórter ao acabar de chegar a um país desconhecido, e propondo-se compará-lo a um país que conhece: o Porto de hoje posto ao lado do Porto de há trinta anos.
Não leio habitualmente os jornais da província. Não frequentando o café, não tendo clube, não indo ao Grémio, não vendo senão as folhas que me traz a minha casa o correio, confesso humilhado que até os títulos desconhecia de alguns dos jornais portuenses, que leio aqui todos, sistematicamente, do princípio ao fim, fazendo deles há oito dias a grande peça de resistência da minha alimentação mental.
Neste ponto devo começar por dizer que o Porto está bastante adiante de Lisboa. A maioria dos periódicos da capital, à parte a controvérsia política sustentada na Imprensa pelos chefes literários dos diversos partidos, não suportam comparação com as folhas portuenses.

Os noticiários daqui encerram um conjunto muito mais variado de informações úteis sobre o movimento científico, sobre o movimento literário e sobre o movimento industrial da Europa. Todos os grandes jornais, que são cinco ou seis, contêm um longo artigo doutrinal, grave, versando sobre a
questão política do dia, ao modo antigo. Como interesse social e às vezes um pouco chocho, porque, pela sua influência no património intelectual dos homens, a coisa que fizeram ou que deixaram de fazer os poderes públicos importa às vezes muito menos à curiosidade e à direção social do que a simples redondilha popular que um gaiato vai descantando pela rua na ária à moda.
Mas o tom geral deste artigo revela sempre um fundo respeitável da aplicação dada ao estudo dos prole mas em voga, uma atitude de crítica serena, uma honestidade aparente, dentro de uma forma comedida e correta.

As correspondências de Lisboa em geral e algumas enviadas das principais cidades da província são feitas com habilidade técnica e com um grande zelo de alvissaragem minudente e fiel.
O folhetim propriamente dito, isto é, a crónica semanal das ideias, dos costumes, da arte e da moda acabou na Imprensa portuense, como na Imprensa de toda a parte. Somente nos periódicos do Porto o espírito literário do folhetim não se infiltrou, como em Paris, nas demais secção da folha. Em França o folhetim deixou de ser o que antigamente era, porque se espraiou e invadiu o jornal todo. Entre nós, ao contrário, o folhetim foi absorvido pelo resto, e não desapareceu porque se transformasse, desapareceu porque acabou.
A antiga geração literária do Guichard, da porta do Moré e da Águia de Ouro extinguiu-se ou expatriou-se, sem deixar sucessores na publicidade portuense. Evaristo Basto, António Coelho Lousada, Augusto Soromenho, Camilo Castelo Branco, Ricardo Guimarães não têm no atual jornalismo portuense quem dê ideia alguma do papel que eles representaram no jornalismo de há vinte anos.

A geração nova tem uma disciplina, um método, uma linha de conduta social, um propósito político, um destino filosófico. Eu sou de uma idade transitória, vim obscuramente num período de transformação, com uma ala de sapadores, e pertenço à pequena companhia antipática dos bola-abaixo. Mas aqueles a cujo lado trabalhei em novo, e que fizeram falar de si, eram personalidades literárias inteiramente diferentes dos jovens escritores de hoje.
Os antigos cronistas portuenses, cujos nomes recordo com saudosa e magoada estima, não tinham filosofia social, não tinham espírito algum de seita ou de partido. Hoje é-se necessariamente revolucionário ou conservador, ou se é pela república ou pela monarquia; há uma grande arte regeneradora e uma arte progressista, um ideal demagógico feito carne em Magalhães Lima e um ideal constituinte personificado em José Dias Ferreira, divergente do atual regime monárquico e bem assim dos sistemas propostos pela democracia radical.
Noutro tempo os homens de espírito não eram mais monárquicos liberais do que eram republicanos ou do que eram legitimistas. No jornalismo contemporâneo toda a pena é uma arma de combate. No jornalismo de outrora a pena para um verdadeiro escritor era apenas um puro instrumento de poesia. Os combates travavam-se unicamente a cassetete com os homens e a olho com as mulheres.

O único inimigo comum para os últimos dos românticos no jornalismo portuense era a estupidez humana, representada pelo honesto burguês da Rua das Flores e da Rua dos Ingleses, e era o espírito imobilizante de rotina, simbolizado no carroção veículo de família puxado a bois e inventado pelo segeiro Manuel José de Oliveira.
Para resistir a estas duas influências e para as combater opunha-se-lhes, arvorado em sistema, o amor da aventura e da violência dos contrastes, a toilette espetaculosa, o movimento, o barulho, a troça, a pancadaria, o escândalo.
Para o fim de irritar o burguês e de o fazer estourar nos seus redutos, de apoplexia ou de raiva, traziam-se casacas de alamares, laços de gravata de palmo e meio de superfície, coletes vermelhos, cabelos até aos ombros. Andava-se de dia pelas ruas e ia-se nos domingos ao Jardim de S. Lázaro levando enrolado no busto um plaid de quadrados amarelos, encarnados e verdes. Nunca se largavam as esporas, traziam-se as calças à hussard, ocassetete de cana-da-índia com uma asa de couro numa extremidade, um galho de veado na outra, e uma baioneta dentro. 

Cultivavam-se de frente seis namoros a um tempo, mantinham-se paixões funestas por meio de cartas em estilo incendiário. Era-se preso ou admoestado pela polícia uma vez por semana. Rebentavam-se cavalos e rebentavam-se batotas. As pateadas memoráveis no Teatro de S. João, à Dabedeille e à Bolonni, à Giordano e à Ponti, deixavam em estilhas as bancadas da sala. De uma vez, António Girão, em pé sobre um banco, com um barrote do soalho em punho, ameaçou a autoridade de que deitaria abaixo o lustre se a guarda municipal penetrasse na plateia. De outra vez, numa empresa de José Lombardi, os coristas e os comparsas, armados de paus apareceram no palco com o pano em cima e desafiaram os espectadores pateantes; o público subiu à cena, e, depois de uma terrível luta de homem a homem, foi varrida a companhia toda para a rua, à bordoada. Metade das senhoras que assistiram a esse espetáculo nunca visto saíram dos camarotes para os seus carroções levadas em braços, desmaiadas ou em convulsões de nervos.
O ar fatal era de rigor nas salas. Os poetas usavam no pulso um misterioso bracelete de mulher, uma pequena caveira de ferro na gravata ou no anel; e todo o mundo literário, à noite, nos bailes, era magro, pálido, impenetrável como um cofre de trágicos arcanos. O sujeito dado à metrificação via deslizar a valsa encostado a uma ombreira de porta, terrível, de monóculo no olho e patchouli no lenço.

De que partido político era o Soromenho, o Lousada, o Soares de Passos, o Arnaldo Gama, o Camilo, o Ricardo? Nunca ninguém o soube, nem lhes perguntou por isso. E todos eles escreveram sucessivamente em jornais de todos os matizes do tempo, patuleias, cabralistas, cartistas, legitimistas, etc. A arte constituía para os que a cultivavam um terreno neutral e autónomo, onde cada um armava a sua tenda, arvorava o seu nome como um pavilhão de guerra e combatia independentemente pela sua própria conta e risco.
De uma vez, há de haver vinte anos, no Jornal do Porto, tendo faltado a carta do correspondente de Lisboa, eu mesmo improvisei à última da hora uma correspondência da capital, em duas grandes colunas de verrina. Esta correspondência infeliz esteve para fazer perder as eleições municipais aos amigos políticos do jornal. Cruz Coutinho, o mais honrado e o mais benévolo dos homens, que tinha feito do Jornal do Porto a sua família, e que tratava os seus redatores como seus filhos, veio correndo espavorido ao escritório da redação, vibrando da mais justa cólera, com o jornal ainda fresco de tinta e de injúrias aberto na mão.

— Como diabo tinha o estúpido do correspondente de Lisboa escrito um artigo daqueles, e como, achando-me eu no escritório à chegada do correio, o deixara passar e aparecer impresso na folha da manhã?
E, tomando conhecimento do ocorrido, num a recrudescência de ira:
— Oh! maldito homem! — me bradou ele — pois você não conhece a atitude política do jornal na grave conjuntura presente? Você não tem visto os artigos de fundo que andamos a publicar há mais de um mês?!
A triste verdade é que eu, efetivamente, nunca vira semelhantes artigos, e a minha única desculpa foi que estava contratado a tanto por mês para escrever no jornal, mas não para o ler. E devo acrescentar agora que, tendo feito parte durante uns poucos de anos da redação efetiva daquele periódico, e enchendo nele regularmente duas ou três colunas por dia, eu nunca então soube, nem ainda hoje sei, que política era a dele no tempo em que eu lá estive!
Presentemente, pelo que tenho lido durante os últimos oito dias, os escritores são incomparavelmente mais políticos do que outrora. O senhor Fontes e o senhor Manuel de Arriaga, o senhor Braamcamp e o senhor José Dias tornaram-se elementos de prosa, as imaginações renderam-se-lhes, a intriga constitucional substituiu nos espíritos a velha intriga poética, e os jornalistas são talvez um pouco mais homens de Estado do que homens de letras.
Para honra destes amáveis escritores cumpre todavia dizer que, se lhes falta como poetas uma ponta de desdém indispensável para não deixar materializar a arte pela familiaridade do vulgo, não lhes falta decerto como estilistas a técnica da profissão.
Não se pode empregar mais zelo na escolha dos vocábulos. Não se pode pôr mais esmero em enobrecer a dicção.
É principalmente nos textos dos correspondentes da província que mais energicamente se manifesta esse escrúpulo na pureza da palavra. nalgumas dessas correspondências a preocupação da retórica atinge quase o estado patológico de uma monomania de sublimidade.

Coisa notável, demonstrada pela observação: o amor grandioso é tanto mais profundo e tanto mais voraz quanto mais pequeno é o lugar de que se escreve! Nada que se compare em majestade aos rasgos de pena com que de Ovar, de Espinho ou de Estarreja se nos conta que ali chegou o polícia 34 para fiscalizar a decência da praia, que choveu na véspera, ou que por deliberação camarária se está pintando o candeeiro da Rua Nova, em frente da caixa do correio!
Decididamente — e é triste ponderá-lo! — a literatura é tanto mais pomposa quanto mais provincial.
De uma praia de banhos escrevem ainda hoje para uma das folhas da manhã:
Esta ténue fímbria de areia osculada pelo Atlântico está sobrepujando e fazendo rosto em competimentos de garridice às praias de maior tomo. Grande é o número de damas e cavalheiros que ora veraneiam nesta estância balnear.

E um outro escreve acerca da morte de uma jovem senhora da sua localidade:
Dramas crudelíssimos da vida real! Reclama a lousa do sepulcro as heras e os goivos que têm de cobrir aquela que a morte arrebata no vicejar dos anos e em quem florescem as singelas virtudes que no lar remansoso dulcificam o travor acerbíssimo da existência!
No jornalismo da capital dizem-se as coisas terra-a-terra, muito mais simplesmente. Assim, no dia em que eu parti de Lisboa, um necrologista resumia todo o elogio do seu morto na seguinte frase verdadeiramente memorável:
Nele concorriam todas as virtudes cívicas e domésticas e vice-versa!
São espantosos os progressos do espírito de associação no Porto. Há ainda mais associações novas do que novas ruas. Perde-se a imaginação no abismo de tantas designações diversas: Sociedade Alexandre Herculano; Sociedade de Beneficência D. Luís I; Sociedade de Beneficência D. Pedro V; Associação Artística Portuense D. Maria Pia; Associação de Beneficência D. Fernando; Associação Humanitária Infante D. Augusto; Associação Liberal D. Pedro IV; Associação Liberal do Príncipe D. Carlos; Real Associação Restauradora de D. Maria Pia; Associação Vila-Novense Fé, Esperança e Caridade; Associação Católica; Associação Firmeza e Aliança; Associação Fraternal de Beneficência Universal; Associação Fraternal do Infante D. Afonso; Socorros Mútuos de Ambos os Sexos do Porto; Luz e Auxílio; Nova Euterpe; Sociedade Camoniana; Tecidos dos Operários do Porto; Amadores Vila-Novenses; Restauração de Portugal; Protetora do Porto; Beneficente Fúnebre Familiar; Sociedade Talma; Sociedade Parturiente Fúnebre; etc., etc., etc.
Conto muito para cima de cem e afundo-me na voragem tenebrosa das mais devoradoras conjeturas ao querer interpretar o sentido dos títulos da maior parte delas.
A de Socorros dos Sexos, Por exemplo, faz-me ourar a cabeça.
A Tecidos de Operários arrepia-me os cabelos de horror. A divisa demagógica do sangue do último dos padres bebido pelo crânio do último dos reis parece-me aqui invertida para o lado dos conservadores, de um modo não menos canibalesco. Enquanto uns beneficiam toda a real família, desde o finado Pedro IV até à tenra vergôntea D. Afonso, apoiados na católica, nas três virtudes teologais de Vila Nova de Gaia, na luz e auxílio e, porventura, na própria firmeza e aliança, outros põem tabuletas de tecidos de operários e fornecem talvez dobrada de classes trabalhadoras com ervilhas aos restauradores da senhora D . Maria Pia!

Que fazem no entanto os beneficentes fúnebres familiares? Iluminam com lutuosos círios amarelos a agonizante bisca doméstica? Cantam aos pianos da Rua das Flores responsos de sepultura? Ensaiam no Jardim de S. Lázaro enterramentos simulados, de amadores, por companhias de defuntos curiosos? Organizam merendas de pingos de tocha pelo rio acima, em regatas de caixão à cova? Passeiam de corpo à terra, em berlindas de segunda classe,
pela Rua de Trás da Sé? Ou cruzam os braços inertes no peito dos balandraus, hirtos, com dois rádios em X no laço da gravata, vendo circular os enganos e as ilusões da vida pela Calçada dos Clérigos em frente do António das Alminhas?!
Que devo pensar da Parturiente Fúnebre, ó meu Deus? Qual pode ser na terra a missão dos dignos sócios desta conspícua assembleia, adornada da sua respetiva presidência, dos seus dois secretários tesoureiro, cartorário e cobrador?... Desisto de o investigar.
Do número das sociedades recreativas desapareceu a velha Filarmónica, templo da antiga arte musical da cidade do Porto, santuário célebre onde receberam o primeiro batismo de semifusas tantos meninos prodígios e tantas donzelas que o Método Carpentier, manuseado com ardor, levou aos grandes triunfos da arte em convívio familiar na Rua da Fábrica, e onde se coroaram com os seus primeiros louros tantos músicos célebres, como o Francisco Eduardo da Costa, o Francisco de Sá Noronha e as grandes dinastias artísticas dos Ribas, dos Arroios, dos Napoleões.

Persistem ainda o Clube Portuense e a Assembleia Portuense, e há vários clubes novos, como o Real Clube Naval, o Real Clube Fluvial Portuense, o Clube Ginástico, o Clube dos Caçadores e o Clube dos Progressistas, assembleia de recreio fundada por operários e regularmente frequentada por eles e pelas suas mulheres.
De entre todas estas associações, sintomas mais ou menos característicos do estado da civilização portuense, sobressai, como instituição de primeira ordem, em competência no País, a Sociedade de Instrução do Porto. Fundada para vulgarizar ideias e espalhar noções, a Sociedade de Instrução tem cumprido brilhantemente a missão que se propôs, e ela só, em quatro anos de existência, tem feito mais para o progresso dos conhecimentos do que os institutos oficiais de natureza análoga, todos juntos. No fim do primeiro ano da sua instalação, o presidente José Frutuoso Aires de Gouveia Osório resumia o movimento dos trabalhos empreendidos nos seguintes termos:
«O conselho científico, fiel intérprete da nossa lei, tem procurado com a mais louvável assiduidade estudar todos os meios de preparar fáceis soluções para os problemas da pedagogia, que absorvem a atenção de todos os pensadores. Na sua solicitude organizou o regulamento interno; fundou a nossa biblioteca e o seu gabinete de leitura, que hoje conta cento e catorze gazetas e publicações periódicas, e muitas centenas de volumes, alguns valiosos e raros; criou a Revista, de que se publicaram já seis números com duzentas e dez páginas; ordenou a aquisição de uma coleção-modelo para os jornais de infância, segundo o método Froebel; encetou a formação de uma bibliografia portuguesa de livros de ensino; começou o estudo e análise dos compêndios geralmente adotados, recomendando os melhores, o que é certamente um dos maiores serviços que pode prestar-se à pedagogia nacional; apreciou minuciosamente e louvou o compêndio de geografia, original do nosso muito ilustre sócio Augusto Luso; encarregou à provadíssima competência do nosso zeloso secretário-geral, o senhor Joaquim de Vasconcelos, um projeto de organização do ensino técnico com aplicação às escolas de instrução primária; investigou e discutiu detidamente as condições do ensino primário e dos exames de admissão, nomeando uma comissão para formular o programa de um livro de leitura; considerou a importantíssima questão da ortografia nacional; finalmente, uma das duas secções prepara uma exposição de história natural, que será, como creio, o ponto de partida para a organização de um museu, onde se reunirão objetos e meios de estudo sempre necessários para os que pensam em alargar os limites da educação.»

Depois deste discurso (1881) a Sociedade de Instrução do Porto levou a efeito, com grande êxito, a exposição de história natural, a exposição de cerâmica, a exposição de indústrias caseiras e a exposição de ourivesaria, factos de um interesse incomparável para o estudo da natureza em Portugal, para a história do trabalho industrial, dos costumes domésticos, das tradições artísticas e das aptidões plásticas da família portuguesa.
A magnífica exposição de louças nacionais e a das principais indústrias tradicionais do povo reuniram os mais numerosos, os mais raros, os mais importantes documentos do génio artístico e da filiação estética da raça lusitana. E todos ou quase todos esses documentos foram minuciosamente e zelosamente estudados por alguns membros da corporação e especialmente pelo secretário da sociedade e o seu principal boute-en-tain, o senhor Joaquim de Vasconcelos, o mais competente e o mais erudito dos nossos críticos de arqueologia e de arte. A Revista da Sociedade de Instrução publicou por ocasião de cada uma das exposições, organizadas sob a sua valiosa iniciativa, as mais interessantes e preciosas monografias sobre as rendas portuguesas, sobre a indústria da olaria, da faiança, da porcelana e da louça de barro grosso, sobre os estofos, sobre os móveis, sobre a joalharia, sobre as alfaias e sobre as vestimentas nacionais.

Além de trabalhos originais contendo a análise de documentos inéditos e estudos de coisas novas, a Revista tornou conhecidas as mais completas bibliografias de todos os trabalhos correlativas esquecidos nas bibliotecas, nos arquivos e nos cartórios do País.
No tomo vastíssimo de informações preciosas prestadas aos estudiosos e ao público pela Sociedade de Instrução do Porto encontram-se ainda trabalhos especiais consideravelmente importantes sobre a reforma do ensino, especialmente do ensino artístico e industrial, sobre a organização das escolas, do professorado, das galerias e dos museus, sobre os costumes e as tradições nacionais, sobre a língua e sobre as formas populares da arte, sobre a aprendizagem por oficias, e enfim sobre todos os mais importantes problemas da pedagogia moderna.

Nem as duas casas do Parlamento na discussão das sucessivas leis de instrução primária e de instrução secundária, feitas, desfeitas, refeitas e contrafeitas durante os últimos vinte anos, nem a junta' consultiva ou a Direcção-Geral da Instrução Pública, nem os ministros, nem os deputados, nem os chefes de repartição, nem as comissões de estadistas, de professores, de curiosos e de vadios, tantas vezes convocadas, reunidas e louvadas nas dependências oficiais do Ministério do Reino ou das Obras Públicas, produziram jamais coisa que se compare aos relevantes serviços despremiadamente prestados à educação pública pela livre e espontânea iniciativa da esclarecida e benemérita Sociedade de Instrução do Porto.

É certo que na ordem intelectual, e na ordem industrial igualmente, o progresso da cidade está em muitos pontos de vista longe de condizer com o seu desenvolvimento material, no decurso dos últimos anos. O comércio dos vinhos finos, por exemplo, esse grande veio da riqueza local, decai lamentavelmente de ano para ano, de dia para dia. A probidade impecável, a honradez proverbial que presidia a esta indústria, passou a ser matéria hipotética, ponto de contestação. Observa-se este fenómeno contristante: por um lado a filoxera diminuiu consideravelmente a produção, por outro lado aumentou o consumo; entre estas duas influências combinadas para diminuir a oferta e para aumentar o valor deu-se precisamente o facto contrário: o preço desceu e a produção subiu! Que quer isto dizer? Que há duas espécies de filoxera, uma nos vinhedos do agricultor e outra nos armazéns do negociante; a primeira diminui e encarece a uva, a segunda embaratece e aumenta a droga. O bicho destinado a destruir dentro de poucos anos o famoso comércio dos vinhos do Porto não é o que ataca a videira, é o que ataca o vinho. 

A ruína não vem da cepa, vem da pipa. O flagelo mortal não está nas terras do Douro, está na Rua dos Ingleses. Compreende-se o mal enorme desta situação, perfeitamente declarada e manifesta, com relação ao comércio de um produto de condições especialíssimas, como o vinho, tanto mais difícil de acreditar quanto é mais fácil de corromper. O vinho adulterado, como o homem doente de nascença, tem a vida curta. A maior parte da beberagem que hoje se negoceia sob o nome de vinho do Porto não é suscetível de envelhecer. Como os relógios baratos, tem apenas equilíbrio para dois ou três anos. É preciso bebê-lo enquanto ele regula, isto é, imediatamente depois de pronto, como a sopa. Se o fazem esperar, por pouco que seja, ele embaça e transtorna-se. Mais alguns anos de experiência — o tempo preciso para os colecionadores de garrafeiras começarem a provar como velhos os vinhos presentemente novos —, e hão de ver que ninguém mais quererá vinho da véspera, e que os negociantes terão de o mandar pelas portas fresco do próprio dia, precisamente como o pão!

Antigamente os negociantes de vinho, no Porto e em Vila Nova de Gaia, constituíam verdadeiras dinastias burguesas, em que a honra do negócio e o respeito da firma passavam em brasão de pais a filhos e de filhos a netos. Esta aristocracia mercante acabou com o advento da nova aristocracia política. Antigamente contentavam-se em ser nobres pela probidade e criavam os filhos para mercadores como eles. Agora quase todos querem ser viscondes
pela intriga e apelintram os filhos pedagogicamente para deputados. Enquanto ao vinho, dizem-me que as novas camadas sociais ainda sabem, no geral, bebê-lo; mas já não sabem negociá-lo.

Outra indústria em decadência, como a do vinho, é a tão simpática indústria caseira da ourivesaria de Valbom. Os antigos feitores habilidosos que faziam ao alicate, em casa, às noites, depois do trabalho dos campos, as bolsas para dinheiro, os cordões de ouro e de prata, ou passaram a trabalhar na joalharia fina, à francesa, ou abandonaram o ofício, ou emigraram. As bolsas e os cordões ficaram apenas para os aprendizes, e são cada vez mais mal feitos, até que deixem de se fazer de todo, por não haver mais quem os queira.
Haverá talvez ainda, se procurarmos bem, um ou outro sinal de decadência nos costumes burgueses, no comércio marítimo, nas indústrias navais, na solidez da riqueza, no culto da arte.

A Sociedade de Instrução é, porém, um fenómeno significativo e consolador. Não sei até que ponto a simpatia do espírito público acompanha os esforços desta operosa associação, nem quais as forças de que ela hoje dispõe, mas creio que lucraria muito o engrandecimento da cidade e o futuro do seu comércio se uma liga de negociantes honrados e instruídos empreendesse na esfera prática uma renovação de movimento semelhante àquele que tão brilhantemente iniciou na órbita das ideias e nos domínios do ensino a associação a que me refiro.
Cumpre-me enfim consignar que o Porto perdeu esse bom e saudável cheiro provincial que tão especialmente embebe como de um aroma antigo a prosa dos seus grandes escritores
— O Arco de Sant’Ana, de Garrett, e alguns dos romances burgueses de Camilo Castelo Branco e de Júlio Dinis.

Os antigos costumes locais desapareceram com as liteiras do Lopes e do Carneiro, com as cadeirinhas da Rua do Almada, com as tortas do pasteleiro da Rua de Santo António, com os carroções do Manuel José de Oliveira, com os Sanjoões da Lapa, do Bonfim e de Cedofeita, com as merendas pelo rio acima, com a política jacobina de José Passos, na sua casa da Viela da Neta, e com o velho botequim das Hortas, em que à noite se jogava o loto a vintém o cartão, e que, ao abrir-se uma das suas portas envidraçadas guarnecidas da cortininha de cassa branca, enchia de um picante perfume de calda de capilé e de café torrado a rua toda, sobre cujos lajedos dormiam estiraçados ao sol, entre os fardos de estopa e as molhadas de verguinha de ferro, os podengos cor de raposa e os galgos dos lojistas.

Aos domingos de Verão, o picheleiro do Souto, o guarda-soleiro da Bainharia, o ourives ou o mercador de panos da Rua das Flores, ia com o romper do dia à missa das almas a S. Francisco ou aos Congregados; comprava depois o melão, a melancia e as laranjas na Feira do Anjo, e, às seis horas da manhã, na escura aquática do Cais da Ribeira, embarcava com a família em barco de toldo para a Oliveira, para Avintes ou para Quebrantões.

O patrão, de quinzena de ganga e chapéu de esteira; as filhas à frente em toilette de musselina; a mulher ao lado, de saia de nobreza, luvas de retrós e a mantilha de lapim no braço, a jovem com as roupinhas novas de camponesa maiata; e o marçano atrás com niza de briche, camisa de linho caseiro, chinelas amarelas de grosso bezerro de Penafiel, e à cabeça o açafate dos víveres, discretamente cobertos com a alva toalha de olho-de-perdiz, e com o chapéu braguês, duro e afunilado, posto em cima, de remate ao festivo monumento campestre de gastronomia dominical: — o alguidar novo com a infalível sapateimda, as postas de pescada frita, as alfaces, as frutas e a inolvidável borracha de canada com o vinho maduro da Companhia, que há de ir refrescar ao fundo do poço, de borda ornada de craveiros e manjericos, debaixo dos álamos, enquanto a família em folga ripar a salada, sentada na erva.

Tamanho era o dia como a romaria. De sorte que só a noite fechada se voltava para casa. E os que tinham ficado na cidade, depois de terem ido ao Senhor Exposto a Santo António das Taipas ou a S. João Novo, viam do paredão das Fontainhas deslizar em baixo, no espelho negro do rio angustiado e túmido, as lentas barcas iluminadas de lanternas. O golpe das remadas, batendo compassadamente nos toletes e arrepiando a corrente, parecia remexer um turbilhão de estrelas no fundo tenebroso da água; e, de vez em
quando, o eco da serra do Pilar repetia como num soluço, da banda de além, uma plangente arcada de violino ou um saudoso harpejo de banzas, com que o morno vento leste varria docemente a superfície do rio, até se ir perder expirante para os lados do Candal, nas alamedas sombrias de Vale de Amores.

As soirées chamavam-se súcias, e as melhores eram as da Feitoria e as da Filarmónica. Nas casas particulares convidava-se para beber uma xícara de água morna. Jogava-se o quino marcado a feijões, obrigado a anexins e a jocosidades apropriadas ao número de cada bola que se tirava do saco. Um conviva idóneo incumbia-se da missão de espevitar as velas. Menores de dez anos, inocentes mas circunspectos, serviam o açúcar e o leite. E ao centro da grande bandeja da doçaria e das fatias de pão com manteiga um cão de água em prata sobressaía ouriçado de palitos. As onze horas um fâmulo dizia: — Chegou o criado das senhoras Viterbas com o saco dos xailes e os guarda-chuvas. E a companhia dispersava pelas ruas cavas e silenciosas, em magotes de pessoas atabafadas de agasalhos, precedidas de um vulto empunhando o clássico e monumental lampião, com duas velas, de acompanhar famílias.

Fidalgos havia seis, unicamente: o da Bandeirinha, o da Rua da Fábrica, o de Trás da Sé, o Cirne do Poço das Patas, o Pamplona de Santo Ovídio e o Terena da Torre da Marca. Quase todos eles tinham velhas seges bamboleantes em altos suspensórios de couro e criados de farda, parecidos com os do bispo, e tendo as cores das respetivas casas nas golas, nos canhões e nos vivos da libré arcaica, cheirando a mofo e a azebre.
A cidade opunha ao prestígio bolorento dos seus velhos nobres a glória constitucional dos seus bravos do Mindelo, dos seus voluntários da Rainha, dos seus soldados do batalhão da Carta, simples negociantes enriquecidos que tinham andado com o imperador de patrona nos rins e escopeta ao ombro, enfarruscando a cara com o fumo das escorvas, de reduto em reduto, do Pasteleiro para as Antas, das Antas para o Bonfim, do Bonfim para a serra do Pilar, em todo o circuito das trincheiras, no tempo do sítio.
Quando o príncipe reinante e a sua augusta família iam às províncias do Norte, o Porto recebia-os de azul e branco, num grande rasgo de júbilo sublinhadamente plebeu, que entocava a nobreza de pura humilhação perante as magnificências da burguesia dinheirosa e bizarra. Os moradores das ruas por onde tinha de passar o cortejo rivalizavam de ardor nas manifestações do público regozijo: colchas e bandeiras nas janelas, girândolas de foguetes, palanques de música, luminárias, loas e arcos de triunfo em lona pintada, do alto dos quais choviam pétalas de rosas sobre os reais hóspedes.

Ao fundo da Rua de S. João, em frente da Ribeira, armava-se um pavilhão ornado de bambolins das cores constitucionais, e nesse estrado, a que subia a família real e os vereadores da municipalidade portuense, de espadim e capa, bacalhau na camisa e tricorne guarnecido de arminhos, se procedia à cerimónia da vassalagem prestada ao rei pelos representantes da Cidade Invicta. O presidente da Câmara apresentava ao soberano sobre uma almofada de veludo duas enormes chaves de cartão dourado, a que pelo mais
arrojado dos tropos Sua Excelência chamava no seu discurso as chaves deste inexpugnável baluarte da liberdade! O monarca retorquia que as chaves do dito baluarte se não podiam achar em mais fiéis e leais mãos que a do orador preopinante. E a Câmara, com as suas chaves de papelão sobre o coxim de veludo, retomava as competentes seges e seguia, atrás da real família e do seu respetivo séquito, até à igreja da Lapa, a orar em frente do sarcófago em que se acha depositado o coração de Pedro.

Alguns dos arcos triunfais, representando castelos roqueiros coroados de figuras alegóricas, tinham inscrições epigráficas em verso. Num desses arcos, na Rua das Flores, lembro-me que se lia, de uma vez, esta conceituosa quadra:
Pela Carla e por li, rainha cara,
O Porto pelejou lula de morte;
Pela Carla e por li, com lança em punho,
O Porto velará potente e forte.

Esse era o tipo consagrado de todas as manifestações do júbilo portuense: um cumprimento à pessoa real, envolto sempre num elogio indireto ao próprio Porto, e destinado a fazer sentir que a comissão dos festejos, a qual pagou pro rata as ripas, a lona, a cola e as luminárias dos arcos, é a mesma que noutra
ocasião aparafusou a coroa na testa augusta do Príncipe. E, se algum parafuso cair à testa referida, o mesmo Porto lá continua a estar, potente e forte, de lança em punho, para o atarraxar outra vez! E não se ensaia para isso ... É zumba, bumba, catabumba! Para rainha e Carta, para liberal constituição e trono, aqui mora o Faz-Tudo! Solda, gruda, parafusa, martela, arrebita, bota abaixo, reconstitui, engonça, retesa, dá corda, regula, acerta e garante — sempre de lança em punho, feito de pedra, velando potente na fachada dos Paços do Concelho à Praça Nova, por cima da arrecadação das luminárias e das chaves do baluarte feitas de pasta pelo Alba dourador da Rua de Santo António.

No fundo das suas convicções políticas e sociais o portuense era verdadeiramente patuleia. Detestava instintivamente a corte, a nobreza, a capital do reino. Gloriava-se de ser tripeiro e articulava esta palavra rijamente, fazendo-se vibrar com explosão, à boca cheia, como se a pronunciasse com três pp. O alfacinha figurava-se-lhe um ser abjeto, esfaimado e pedinchão, ocioso e tísico, e a alfacinha uma delambida, de cuia à banda, cuspinhenta e desolhada, namorando os amanuenses das secretarias e os alferes do exército, e recitando poesias ao piano, com a barriga a dar horas e as meias rotas nos revesilhos dos calcanhares e das biqueiras. Ah! boa roca à cinta e bom côvado pelas costas! O Governo uma corja! E os pelintras dos deputados, tão bons uns como os outros! — Tal era a opinião sintética, geral na Rua das Flores e na Calçada dos Clérigos há vinte e cinco anos.

Hoje, transformação completa! Os burgueses mais opiniáticos, mais indómitos e mais cabeçudos docilizaram-se com uma facilidade memorável depois de ligados a Lisboa pelo caminho-de-ferro e pela intimidade correlativa da intriga política e da chicana partidária. Os patrões, juntamente com partido político, botaram bigode, e os marçanos botaram gravata. Desapareceram os venerandos capotes bandados de veludo, de ir à desobriga e ao Senhor, e desapareceram as belas mantilhas de coca, feitas de lapim ou de sarja de Trás-os-Montes. Vulgarizou-se o jogo da Bolsa e a lotaria. O número dos fidalgos, com mais ou menos exercício no Paço, elevou-se rapidamente de seis a seis mil. Com a deslocação do antigo eixo do negócio tradicional, ramerraneiro, cauto, economizador, estreitamente e lentamente espremido, atrás do balcão à luz da vela de sebo ou do candeeiro de três bicos, ou de feira em feira atrás da récua dos machos, de Viseu para Vila Real, de Vila Real para Penafiel, quadruplicaram ou quintuplicaram as falências. A cidade encheu-se portentosamente de viscondes e de casas de empréstimos sobre penhores.

Quando o rei vem, já se não procede à cerimónia da entrega das chaves do baluarte. O antigo Palácio das Carrancas, à Torre da Marca, pertence agora à Coroa, como o Palácio da Ajuda. O Porto enfim cessou de ser província. É segunda capital (segunda por ordem cronológica, bem entendido!) e a sua alta burguesia constitui para a corte uma espécie de casa filial, com as mesmas fazendas, somente com melhor sortido e mais barato. Em vez de levantarem arcos de triunfo com alegorias e versos patrióticos, os próceres do comércio
vão dançar a palácio. 

Com o monarca dentro dos seus muros, o bom e antigo burgo, tão cioso outrora dos foros plebeus dos seus mercadores e dos seus mesteirais, converte-se num jardim zoológico de cortesãos, num seminário de áulicos, num Versalhes de improviso.
Os ferrões dos guarda-sóis das suas mercês, raspando pelas lajes acima da Rua dos Carmelitas, adquirem o tilintar aristocrático de finas espadas de corte. Nas lustrosas e espalmadas sapatetas dos mesários da Lapa e dos irmãos terceiros de S. Francisco parece quererem espigar os tacões encarnados dos galantes marqueses contemporâneos da Dubarry ou de Marie Antoinette. E em todas as línguas que se deitam de fora para lamber dedos polegares, ajudando a calçar as luvas brancas pelo Largo dos Lóios, como que se vê palpitar o madrigal subtil dos roués perfumado pela pastilha almiscarada dos mignons. É o Trianon que temos diante dos nossos olhos ou é o edifício da Bolsa?... É o Lago de Neptuno aquilo ou é o chafariz de Vilaparda? . .. Estamos no Parc-aux-Cerfs ou estamos na Ramada Alta? .. Ninguém o saberia distinguir. Pelo que dou os meus parabéns à Invicta Cidade. 

Unicamente receio que, quanto mais ela intervenha na corte e na política pela amenidade palaciana e pela domesticação partidária na sua qualidade de segunda capital, menos venha a preponderar como província nessa moralizadora influência em que o simples trabalho obscuro, persistente e honrado se contrapõe para a riqueza e para a prosperidade dos Estados Unidos à inquietação loquaz e estéril dos burocratas e dos bacharéis.